Entrevista com a artista plástica e professora Priscilla de Paula
Daniela Aragão: Como começou o seu contato com a arte?
Priscilla de Paula: Desde pequena a arte a apareceu na minha vida. Eu desenhava muito, meus pais tinham uns livros de arte e eu lembro de mim copiando aquelas pinturas, muito encantada pelas imagens. O interesse profissional pela arte se deu na época da faculdade, primeiro fiz um vestibular para psicologia, passei e cursei um ano só. Resolvi largar e decidi que queria fazer artes aqui em Juiz de Fora, tinha o curso de Educação Artística na época. Pensei na ocasião que eu poderia ser ilustradora, fazer estória em quadrinhos, este então foi o chamado. Era o meu caminho mesmo, eu não trabalhava profissionalmente com arte, mas eu desenhava. Muitos artistas que passam pela academia começam a estudar porque desenham, na faculdade tive muito contato com a pintura, que foi muito importante. Quadrinho acabou não tendo nada a ver, mas a ilustração sim, gosto muito de ilustração e trabalho com isso também hoje em dia. Apareceu também a possibilidade de dar aula, trabalhar com o ensino de arte. O ensino da arte estava funcionando como uma saída também, naquela época na faculdade éramos ainda muito provincianos até pelo contexto da cidade de Juiz de Fora mesmo, que agora já cresceu muito. Só era possível participar dentro da história da arte, só poderia ser artista se fosse reconhecido dentro de um contexto de mercado, de grandes instituições. Então dar aula era uma saída para quem queria seguir a carreira ganhando a vida com arte. Mas gosto muito de dar aula, sempre gostei muito de estudar.
Daniela Aragão: Vi quadros seus na casa de seus pais e outros aqui em sua casa. Você prosseguiu na pintura?
Priscilla de Paula: Mais ou menos. Pinto até hoje, mas atualmente trabalho com aquarela. Na linha da ilustração. No entanto a pintura é muito importante, porque ela mostra um percurso do meu trabalho. O meu trabalho como artista passa pela pintura, em que coloco algumas questões fundamentais que se ligam a minha história pessoal e a questão do corpo. A pintura sempre mostrou isso, então ela é importantíssima na minha vida, embora eu não trabalhe mais de forma tão sistemática e periódica. O meu trabalho poético está muito mais ligado atualmente a uma produção de performance, de objetos, áudio e ilustração. As pinturas que considero importantes são principalmente os retratos de meninos que você viu na casa de minha mãe. Vou retomar um projeto que começa ali e que considero um marco do meu trabalho emocional. É um trabalho muito imaturo, eu tinha apenas 24 anos, mas é importante, pois começa a falar do corpo e de mim mesma. São textos que eu escrevia relacionados com a escrita em forma de diário, e que aparecem em meu trabalho com muita frequência. Começou ali naquele momento, aos vinte e cinco anos e se desenvolveu nas pinturas de flor. Eu pintava flores e escrevia partes do meu diário. Essas pinturas são importantes, pois dão o salto para o corpo. Não sei se é uma conclusão definitiva, mas essas flores vão culminar num trabalho meu de 2010, 2011, 2012 que se chama Doze cadernos. É um trabalho que está on line também. Os 12 cadernos é o resultado da escrita do meu diário on line.
Daniela Aragão: Então você conjuga a escrita com a imagem?
Priscilla de Paula: Mais ou menos, nas flores posso dizer que sim. Conjuguei a escrita com uma poética que foi além da imagem. Comecei a reler meus cadernos que eu tinha desde menina, eram 12, por isso 12, pois passei a reescrever, colher partes. Acabou sendo um trabalho em que falo do amor a partir desses diários. O projeto seria ultrapassar o espaço virtual da internet, pegar aqueles fragmentos, gravar em áudio e disponibilizar isso em instalações de áudio. Fiz uma exposição em 2012 na Hiato com aquarelas que tinham a ver com aqueles áudios. Dois trabalhos eram vestidos em que eu colocava o áudio dentro e contava em segredo minhas histórias.
Daniela Aragão: Me faz lembrar uma exposição que vi da Louise Bougeois no CCBB, no Rio de Janeiro, faz muito tempo. Ela colocou alguns corpetes, camisolas e vestidos dependurados que faziam remissão a muitas memórias pessoais.
Priscilla de Paula: Adoro Louise Bourgeois, tenho uma super influência dela. Sempre que olho suas obras acho que estou copiando. Ela revela uma relação linda com o corpo. Fiz uma performance no Rio de Janeiro em 2011 em que eu trocava segredos, e vinha também com essa franquia 12 cadernos. A pessoa me contava algo e eu gravava. Gosto muito de áudio, já gostei mais ainda, mas continuo gostando. Gravar vozes das pessoas ou a minha voz e colocar em algum lugar do trabalho. Meu último trabalho foi feito recentemente na Pró-Música em 2013 junto com os professores do IAD, elaboramos uma exposição sobre música para o Festival de Música Colonial. Selecionei uns áudios inéditos dos 12 cadernos e coloquei num vaso de porcelana. Ficou bonito, uma acústica interessante. Esse projeto é colocado a partir dos segredos, ou seja, os meus segredos que coloco abertamente. O texto está muito presente no meu trabalho.
Daniela Aragão: É interessante como atualmente está em voga a tematização do corpo e da performance. Seja o corpo em movimento ou o corpo transformado. O corpo tatuado, com objetos inseridos e tal.
Priscilla de Paula: A performance sempre existiu, há varias poéticas do corpo. Atualmente está aparecendo mais, pois a mídia está dando mais atenção. Sempre houve a performance, tanto no campo do teatro, da dança, da música e das artes visuais também. Talvez as artes visuais sejam o campo mais novo da performance, como a gente entende hoje em dia como performance. Temos um monte de ações no início do século XX, os artistas já estavam fazendo coisas ao vivo, mas a jogada de usar o próprio corpo do artista, voltar-se para o próprio corpo, começa na década de 1950 e 1960. Até com o Jackson Pollock, que era um pintor que vinha de uma escola de pintura até bem careta se comparada com as perfomances que viriam depois. Ele inaugura o corpo em cena inserido numa crítica extremamente reacionária se formos comparar com a crítica contemporânea. Sempre existiram artistas trabalhando com o corpo...
Daniela Aragão: Retomando a questão do som aliado a imagem, me recordo de um trabalho iniciado com a obra dos Beatles e que acabou sendo adaptado para alguns compositores brasileiros. Chamava-se "o som vivo de", cerca de setenta artistas plásticos se debruçaram sobre as obras de Chico Buarque, Tom Jobim, Caetano Veloso, Gilberto Gil e o universo do samba. Cada artista respondia em forma de instalação, pintura sua recepção da canção. Tudo isso foi fotografado e reunido em livro depois.
Priscilla de Paula: John Cage foi importante, o próprio Duchamp que começa a encantar toda essa gente que estava envolvida com o áudio e com movimento como Merce Cunningham. No museu de Inhotim há uns trabalhos com áudio que são fantásticos, vi uma instalação de uma mulher que ia narrando seu pesadelo. A montagem muito boa, com muitas caixas de som em que você escuta a narração de muitos lugares, muito canais. Outra também que era um canto polifônico maravilhoso com setenta e cinco caixas de som. Gosto muito desse tipo de trabalho, me chama muita atenção.
Daniela Aragão: Não há fronteiras.
Priscilla de Paula: Sei que tem uma jogada dos anos oitenta do vídeo clipe com a performance que é interessante pesquisar.
Daniela Aragão: Me lembro de uma exposição sua em 2006 "Mulher Invisível", uma situação interessante me marcou na noite de abertura, notei talvez uma espécie de "olhar provinciano", ou seria um certo pudor? Várias imagens nuas estavam tampadas, viradas do avesso.
Priscilla de Paula: Não acho que é propriamente um olhar provinciano, mas uma angústia da auto exposição.
Daniela Aragão: A proposta não foi estetizante, foi crua. Você não usou nem um efeito.
Priscilla de Paula: Não usei efeito nenhum. Eu já passei por um momento de angústia ao ficar nua e eu nunca tive problema em relação a isso. No "Mulher Invisível" por exemplo eu estava nua sem problema. Mas num determinado momento de uma performance, por uma série de razões subjetivas que são minhas, fiquei meio angustiada ao ficar nua. Isso acontece com qualquer um, qualquer mulher, qualquer homem. É o deparar-se com essa questão do corpo nu, o corpo nu não é simples, ainda mais para quem vai ficar nu. São muitos sujeitos em jogo dentro de uma pessoa só. No "mulheres invisíveis", que foi um trabalho em que saí da pintura para a fotografia, começou a se delinear uma mostra dentro do meu percurso, embora ainda não tivesse explícita a idéia da performance. Sair da pintura e partir para a fotografia com esse corpo concreto sem estetizar, já era um índice desse caminho que eu iria prosseguir em direção a performance.
Daniela Aragão: Como foi a experiência de ter estudado no exterior?
Priscilla de Paula: Terminei minha faculdade e fui para Valencia fazer doutorado. Morei sozinha na Espanha durante quatro anos, na época pesquisei grafite feminino. Foi meio uma tese de gênero, onde tentei pesquisar as poéticas femininas. Hoje mais amadurecida, faço uma avaliação de que já estava falando do corpo, mas sem saber claramente como falar. Depois que fiz a tese vi que o grafite não me interessava, me interessava o feminino, as questões de uma poética feminina.
Daniela Aragão: O recurso que elas utilizavam não era o primordial, sim a expressividade feminina.
Priscilla de Paula: Eu uso o grafite como um estudo de caso, olhando aquela tese hoje, apesar de ter sido um trabalho bem recebido pela universidade, não acho um trabalho tão bom. As pessoas hoje em dia me procuram para falar sobre grafite, mas digo que não dá pois nunca mais estudei isso, estou desatualizada nessa questão. Foi um trabalho muito legal, pois fiz muita pesquisa de campo, e o resultado saiu bem organizado do ponto de vista de uma pesquisa. Eu tinha vinte e cinco anos, era muito nova. Não me envolvi com a arte contemporânea intensivamente naquele momento, pois estava envolvida com o grafite. Ficou da Espanha uma grande angústia, foi lá que eu cresci muito, e essa angústia eu trouxe para o meu trabalho.
Daniela Aragão: E sobre último evento que você fez inteiramente voltado para a performance?
Priscilla de Paula: Foi o II FAC, festival de artes do corpo. O FAC começou dentro de um grupo de pesquisa que lidero no IAD, que se chama Intervenções em lugares, espaços e adjacências, ILEA. Este grupo é composto por alunos do IAD e artistas de Juiz de Fora. Uma de suas linhas de pesquisa é o corpo na arte. Fizemos alguns projetos pequenos como seis horas de performance na feira, participamos de um festival enorme de performance em Brasília chamado Tubo de Ensaios. No I FAC abrimos o edital chamando os artistas para participarem em torno do tema "Reperformance", foi pequeno, aconteceu na Casa de Cultura com umas quatorze a dezessete performances. Convidamos o Lúcio Agra, que é um nome importante da performance do Brasil. O II FAC foi consideravelmente maior, realizado em três dias. O tema foi "Corpo ampliado". Vieram pessoas de vários lugares com uma qualidade muito alta de trabalho. Interessante, pois este festival é elaborado por mim ao lado dos alunos da graduação.
Daniela Aragão: Vi algumas fotos suas com um manto vermelho de crochê.
Priscilla de Paula: Em "Com olhos bem abertos" fiz um manto de crochê exclusivamente para esta performance, que consistiu no ato de desmanchar o manto. Enquanto eu ia desmanchando em público, passava um vídeo atrás e as pessoas também participavam ajudando a desmanchar.
Daniela Aragão: A riqueza da criação consiste também na maleabilidade com que se trabalha essa simultaneidade de informações, e ao mesmo tempo intencionando causar um impacto, ou chamar atenção para mínimas nuances.
Priscilla de Paula: Quando o trabalho passa pela imagem, procuro resolver muito bem. O crochê é muito importante no meu trabalho, fiz algumas estruturas em crochê intituladas "Máquina do tempo", que eram preenchidas com bolas de soprar. O vermelho é uma cor que utilizo muito nas performances. O ato de desmanchar um manto vermelho foi até uma tentativa de sair desse vermelho, não sei se vou sair de fato.
Daniela Aragão: Quais são seus próximos projetos?
Priscilla de Paula: O próximo projeto se chama "Flores para ela", um projeto com fotografia em que vou fotografar homens, natureza e roupas de mulher.
Daniela Aragão: Quais os artistas que mais te tocam?
Priscilla de Paula: Louise Bourgeois, Vito Acconti, um italiano fantástico da performance. No Brasil Cildo Meireles, Nuno Ramos, Adriana Varejão, Leonilson, que traz a delicadeza da ilustração. Sophie Calle, enfim são muitos que me inspiram e me fascinam.
Daniela Aragão: Obrigada pela ótima entrevista. Muita inspiração para você.
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Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.
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