Cacaso é horizonte
A água estava quente para os padrões da gelada Nova Friburgo. Eu, Cláudio Nucci e Dri, após um gostoso mergulho, conversávamos à beira da piscina da casa do casal. Piscina que puxa água, que puxa lagoa, que puxa cachoeira, que puxa rio e que deságua no mar. Mar é sempre fascínio de mineiro, Cláudio talvez entrevisse, por instantes, um brilho nos meus olhos, quando comparou minha sede mineira de pisciana carente de mar, com a força da sede marítima, do também pisciano, Cacaso: “mar de mineiro é tudo/mar de mineiro é fase/mar de mineiro é mudo/mar de mineiro é quase/mar de mineiro é frase/mineiro tem mar de cio/mineiro tem mar de fonte/mineiro tem mar de rio/ mineiro tem mar de monte/mar de mineiro é horizonte”.
Conheci Claudio Nucci em São Paulo, numa bela apresentação que fazia em homenagem a Dorival Caymmi. Conversa vai, conversa vem, descobrimos afinidades que se uniram em torno da memória de Cacaso. Na ocasião, eu acabara de concluir minha dissertação de mestrado sobre o poeta e alimentava o sonho de gravar um disco, que reuniria suas canções em parceria com Sueli Costa. O disco aconteceu e hoje, doze anos após, a força de Cacaso, misteriosamente, me coloca devagarinho próxima dos seus parceiros.
Com os pés mergulhados na água azulzinha da piscina, Claudio me revelou que estava em processo de realização de um filme sobre a vida de Cacaso. Como era tudo incipiente, não tive acesso a nenhum detalhe. As águas passaram em direção ao mar. Assim o tempo passa. E ontem revi pela terceira vez o tão emocionante filme “Cacaso – Na corda bamba”, com argumento de Antônio Luiz Mendes, roteiro e direção de José Joaquim Salles e trilha sonora de Francis Hime.
“Poesia eu não te escrevo/Eu te vivo/ e viva nós”. Cacaso fez desse poeminha relâmpago o seu lema de vida, em sua veloz e marcante inscrição sobre a terra. Brasileiro de estatura mediana, traje inextirpável “eterno menino-homem”: sandálias de borracha de pneu, “oclinhos la John Lennon” e cabelo longo e escorrido a emoldurar a face arredondada.
“Na corda bamba” reconstrói o traçado da vida de criação efervescente do artista, por meio de depoimentos de amigos e familiares. Roberto Schwarz, Geraldo Carneiro, Chacal, Heloísa Buarque, Joyce Moreno, Francis Hime, Edu Lobo, Leilah Landim, Walter Carvalho, Ana Luiza Escorel, Luiz Olavo Fontes, Pedro Landim, Rosa Emília, Chico Alvim, José Joffily, Maurício Maestro, Novelli, Nelson Ângelo reconstroem o percurso existencial e produtivo de Cacaso, desde a infância na fazenda da família, em Minas Gerais.
Palavra que captura um verso “Passou um versinho voando ou foi uma gaivota”, que flerta com uma nota, que abre uma paleta de cores “Dentro de mim mora um anjo/ que tem a boca pintada/que tem as unhas pintadas”. Poucos talvez saibam que Cacaso além de ter se destacado como um exímio letrista e ensaísta, também, era talentoso desenhista e manipulador de cores e formas. O diretor utilizou como condutora da narrativa a simbiose arte/vida, que desponta inundada de lirismo e delicadeza plástica.
Cacaso não fez cisão entre vida e obra, todo dia, toda noite, toda hora, toda madrugada, momento e manhã, era oportunidade para o poeta experimentar a vida em sua polifonia-policromática de sensações. Tudo era registrado em seus diários, cadernos de capa dura e sem pauta com dimensões diversas, alguns eu tive a emoção de folhear, pelas mãos de seu filho, Pedro Landim.
Uma moldurinha em lápis de cera, cor-de-rosa, contorna o despojado bate-papo entre Cacaso e Maurício Tapajós, relíquia de imagem em som, cor e movimento. Sueli Costa, com seu sorriso tímido e afetuoso participa do mesmo evento, enquanto sem lero-lero o poeta enaltece a singularidade da parceira: “Ela pega uma letra de uma canção, coloca uma música em cima com tal perfeição, com tal intensidade com a letra, que algumas vezes eu só fui entender o que eu tinha feito depois que a Sueli compôs a música”.
Roberto Schwarz, com sua análise precisa, elucida as inquietações que assolavam a ânima de Cacaso. Face a face com as trapaças da sorte e as graças da paixão, inquietava-lhe sobremaneira o dilema academia/vida criativa. A música popular brasileira ainda não havia sido triturada pela indústria massificadora e Cacaso apostou no sonho de viver da renda de direitos autorais. Escolha que implicava uma autodisciplina, cujo poeta cumpria com fervor na sua casa-escritório.
Mais que pensador de sua própria geração e articulador ativo no contexto da poesia marginal, Cacaso foi um artista e intelectual vigoroso, que agregou em torno de si um grupo consistente de intelectuais e artistas. Seu famoso apartamento na Avenida Atlântica era uma “open house”, espaço ininterrupto de fomentação de ideias, que envolviam, sobretudo a literatura, a canção e a política.
Boas prosas e obras já circularam ao redor da casa da tia Ciata, do apartamento de Nara Leão e do bar Zicartola. A casa de Cacaso, certamente, foi um polo de confluência de ideias, que merece ser avaliado com olhares mais atentos.
Em “Na corda bamba”, a espontaneidade e o despudor do eterno menino-homem Cacaso alinhavam cenas únicas, como a passagem em que o compositor Nelson Ângelo revela que o parceiro mandava (em segredo) o mesmo verso, para vários compositores colocarem sua música. Olivia Hime reitera o fato, afinal de contas visionário que era, Cacaso tinha a obra aberta para a singularidade de cada parceiro.
O “homem rolete”, que rola na areia com o suor de sua pele e a efusão de suas ideias, solta da memória do filho Pedro Landim. Joyce Moreno recorda do garotão que furou os protocolos de um encontro formal, ao entrar de chinelos e de mãos dadas com a namorada, a jovem baianinha, Rosa Emília.
Homem “rolete da areia”, mas acima de tudo peixe, inquieto das águas ondulantes, profundas, azuis e misteriosas do mar: “Quando você chegar ao apartamento e me vir conversando com o pessoal da calçada, dando tchau, falando oi com os porteiros, você entra e conversa comigo numa boa. Mas quando você entrar aqui e me ver quieto, olhando para o mar, não mexe comigo não. Estou trabalhando”. Cacaso é horizonte.
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