Entrevista com o desenhista Mário Tarcitano
Daniela Aragão: Como começou a imagem em sua vida?
Mário Tarcitano: Nasci em Volta Redonda, uma cidade industrial do estado do Rio. Meu pai costumava levar para casa uns blocos de papel que nos serviam para rascunho. Lembro que minha mãe, dona de casa com três filhos pequenos, para ter um pouco de sossego nas suas tarefas, nos colocava, eu e meus dois irmãos, para desenhar nesses blocos de papel. Que eu me recorde, meu irmão mais novo desenhava até melhor que eu, mas em determinada idade ele parou.
Toda criança gosta de desenhar e eu nunca parei. Gostava muito de revistas em quadrinhos e ficava desenhando seus personagens. Sempre gostei de desenho animado e fui muito estimulado, desde cedo, pelo desenho.
Daniela Aragão: Certamente você devia ser o desenhista da sala de aula na escola.
Mário Tarcitano: Ah sim. Na escola ganhava até uns trocados. Fazia alguns desenhos de ídolos de futebol para colegas que eram torcedores e fãs. Eu sempre fui tranquilo na escola, fazia as bagunças nos bastidores, não era um bagunceiro que aprontava muito. Fazia sim muitas caricaturas de colegas e de professores, o que gerava boas risadas.
Nos trabalhos de biologia os colegas me chamavam para entrar nos grupos pois eu fazia as ilustrações, desenhava as amebas e tal... dava uma enfeitada nos trabalhos. Então isso foi seguindo pela vida, de criança passando para adolescente, jovem e adulto.
Daniela Aragão: Você foi percebendo então que o desenho poderia ser o seu ganha pão, o seu ofício.
Mário Tarcitano: Eu via alguns colegas da escola, como Gustavo Machado, que entrou para uma editora e começou a desenhar profissionalmente. Eu era um pouco mais novo, começando a desenhar e ele ganhando seu salário pra desenhar o Zé Carioca. Pensei então que poderia viver disso. Trabalhei em outras atividades. Fui metalúrgico. Trabalhei por dois anos na reforma do Alto Forno 3, da CSN, mas continuava desenhando. Com o traço um pouco mais amadurecido, preparei algumas caricaturas para mostrar nos jornais de Volta Redonda. Peguei a relação dos que havia na cidade e fui no que era mais perto da minha casa, pra não gastar a grana da passagem. Ele se chamava "Jornal de Hoje", era um jornal de Nova Iguaçu, mas que tinha uma página para as notícias do Sul Fluminense. O editor era o Sr. Reis, um maranhense que veio pro sudeste pra trabalhar na CSN. Era meu vizinho, pai da cantora e pianista de jazz, Tânia Maria, que fez carreira no exterior.
Mostrei a ele algumas caricaturas de Gal Costa e outros músicos. Na hora buscou umas fotos de uns vereadores da cidade e me pediu para que fizesse as caricaturas e que me pagaria pelo trabalho.
Daniela Aragão: Você é absolutamente autodidata? Chegou a frequentar algum curso de desenho?
Mário Tarcitano: Sou autodidata. Comprava livros e estudava. Observava muito o trabalho dos desenhistas e cartunistas consagrados. O Lan foi um que me influenciou muito. Em Barra Mansa, cidade colada na minha, havia Clécio Penedo, um excelente artista, desenhista maior, com quem tive contato. Extremamente generoso, me emprestava seus livros de arte e aprendi muito sobre desenho apenas observando o Clécio trabalhar.
Daniela Aragão: Quantos anos você tinha quando assumiu a tarefa de fazer as caricaturas dos vereadores?
Mário Tarcitano: Eu tinha vinte e três, por aí... Passei então de caricaturista da escola a caricaturista de jornais da cidade. Esse jornal de Nova Iguaçu era diário. Em dado momento o Sr Reis me perguntou se eu fazia charges, e até então eu só fazia caricaturas.
Argumentei com ele que não entendia nada de política, na época lia apenas cadernos de esporte e cultura. Daí ele me contou uma situação envolvendo o Brizola, que era governador do Rio, e me pediu uma charge sobre o tema. Fiz a charge e ele publicou. Foi então que comecei a ler sobre política e me ligar nas situações. Comecei a comprar o Pasquim para tentar entender aquele universo e criar minhas próprias charges.
Daniela Aragão: Você também trabalhou com desenho publicitário.
Mário Tarcitano: Sim. Na publicidade passei a me interessar por programação visual, pelo design. Todo esse universo das artes visuais me fascina.
Daniela Aragão: Você trabalhou como designer?
Mário Tarcitano: Trabalhei e ainda faço alguns trabalhos como designer gráfico. É um mercado muito difícil o de Juiz de Fora.
Daniela Aragão: Você traz uma marca muito pessoal no seu traço, que considero um ponto muito positivo. Penso que os caricaturistas sobretudo devem possuir uma sensibilidade muito aguçada para se aterem a detalhes. Qualquer pessoa é caricaturável?
Mário Tarcitano: Acho que qualquer pessoa pode ser caricaturada. Existem algumas dificuldades: uma criança tem menos traços para definir, praticamente não tem marcas de expressão é um pouco mais difícil. Mulher também tem menos marcas no rosto que o homem, que pode ter uma barba, bigode, tudo isso facilita. Mulher e criança são mais difíceis de caricaturar.
Daniela Aragão: Parece-me que os cartunistas em geral acentuam os traços defeituosos e isso torna o desenho mais carregado de humor.
Mário Tarcitano: Sim, principalmente se é possível utilizar esse traço para reforçar uma ideia. Quando o Bruno Siqueira ganhou a eleição desenhei ele surfando, descendo na onda pelo tubo formado pelo topete do Itamar.
Daniela Aragão: Para o jornal "Tribuna de Minas" você tem que ter um desenho por dia. Isso é um exercício contínuo com a criatividade.
Mário Tarcitano: Com certeza, só não tem desenho meu na segunda feira. Depois que você pega o ritmo, torna-se mais fácil o caminho, pois os acontecimentos políticos se sucedem e os desdobramentos, de certa maneira, se tornam previsíveis e vou seguindo essa trilha. Por exemplo, agora estamos debruçados na questão do impeachment da Dilma e do escândalo da Petrobrás. Eu tenho liberdade de criticar tanto a direita, que quer o impeachment a qualquer custo, quanto ao governo, que forneceu motivos para deflagrar esse processo político conturbado que atravessamos. Embora eu tenha pessoalmente uma inclinação mais à esquerda, não posso concordar com várias coisas que aconteceram e estão acontecendo no governo. Essa liberdade facilita minha criação.
Daniela Aragão: E o poder da imagem é tão forte que dispensa a palavra.
Mário Tarcitano: Procuro sempre a ideia que dispense a palavra. Quando o assunto está na boca do povo é mais fácil, mas tem vezes que se torna necessária alguma preparação do assunto, para o entendimento da ideia.
Daniela Aragão: Você tem liberdade total para elaborar suas charges?
Mário Tarcitano: Tenho, mas também tenho a responsabilidade e preciso administrar isso. Tem horas que a gente vê absurdos tão grandes que dá vontade de chutar o balde. Mas, embora a assinatura e a responsabilidade do que está publicado seja minha, eu sigo a linha editorial da Tribuna.
Tem charges que provocam muita polêmica, principalmente na internet. As pessoas, agressivamente, me cobram imparcialidade, mas talvez a charge seja o conteúdo mais parcial de um jornal. E na Tribuna ela está no caderno OPINIÃO. Não tem como uma opinião ser imparcial.
Daniela Aragão: Você já pensou em reunir as suas imagens num livro?
Mário Tarcitano: Sim, estou trabalhando nisso. Não somente as melhores charges da Tribuna, mas os cartuns e caricaturas do começo da carreira. É muita coisa para juntar, estou separando e selecionando. Em determinados momentos me deparo com um desenho nem tão importante, mas com o qual possuo uma forte ligação emocional, então tenho que me desapegar, quase num processo terapêutico (risos). Este livro seria uma retrospectiva, uma revisão da minha trajetória de uma vida, tem muito material, então se torna necessário separar o emocional em favor da objetividade. Acho que por isso mesmo existem os curadores. Quem está envolvido na criação tem dificuldade em favorecer um trabalho em detrimento de outro.
Daniela Aragão: E o Henfil?
Mário Tarcitano: Henfil é genial. Ainda é atual, mesmo após 24 anos de sua morte. Com um traço simples conseguia dar um movimento incrível aos seus personagens.
Daniela Aragão: Tocando no Henfil, me recordo de que num de seus depoimentos ele disse que havia se arrependido por ter enterrado algumas pessoas no "Cemitério dos mortos-vivos". Ele desenterraria Drummond e Elis Regina, ela apareceu regendo uma orquestra, fato que no fundo aconteceu mediante pressão, quando ela teve que cantar nas Olimpiadas do exército. Henfil não perdoou (risos).
Mário Tarcitano: Essa situação do Henfil colocando a Elis e o Drummond no Cemitério dos Mortos Vivos, é uma situação típica de períodos de grande polarização política, e isso estamos vivendo hoje. Os esquerdistas chamam de coxinha os ligados à direita e o pessoal da direita, chamam de petralha quem lê Caros Amigos ou veste uma camisa vermelha. O cartunista tem o perfil humanista, em geral vai estar sempre contra qualquer tipo de truculência, censura, etc. Vai criticar quem pratica ou quem se aproxima e, de alguma maneira, endossa quem pratica.
Daniela Aragão: E você tem amigos nessa área?
Mário Tarcitano: Alguns. Em 1985 ajudei a criar o Salão de Humor de Volta Redonda. Já aconteceram mais de vinte edições. Faço parte da comissão julgadora desde então. Nos reunimos anualmente para avaliar e premiar os participantes. Vários cartunistas, hoje conhecidos profissionais, iniciaram naquele Salão de Humor e alguns deles se tornaram amigos.
Daniela Aragão: Conheci você na casa do pintor Dnar Rocha, vocês conversavam sobre pintura na ocasião.
Mário Tarcitano: Pois foi o Dnar que me instigou a pintar. O conheci numa gráfica, ao levar um trabalho. Ficamos conversando por horas e seguimos conversando até o ponto de ônibus, ambos pra pegar o Mundo Novo. Foi quando descobrimos que éramos vizinhos. Ele na rua Pedro Botti e eu na Vieira Pena.
Me convidou para conhecer seu ateliê e não parei mais de frequentá-lo. Me orientou muito e incentivou a pintar. Dnar foi um dos grande amigos que tive em Juiz de Fora.
Daniela Aragão: Você pinta?
Mário Tarcitano: Sim. Dnar me deu a dimensão do desenho artístico, que não tem nada a ver com o desenho que faço nas charges. Foi um dos assuntos que muito tratamos. Trabalhei muito meu traço, desenhando músicos na noite de Juiz de Fora. Nos início dos anos 2000 haviam várias casas onde se ouvia música instrumental, e quem as frequentava, provavelmente me viu desenhando. Fazia isso constantemente. No desenho consegui chegar a uma identidade própria, assim como tenho um traço definido nas charges. Na pintura ainda estou em processo.
Daniela Aragão: E você já expôs sua série de desenhos inspirada nos músicos?
Mário Tarcitano: Sim, aqui no CCBM, mas não exclusivamente de músicos, estavam mesclados a outros temas. Uma exposição apenas com os desenhos de músicos aconteceu num festival de rock no Rio, se não estou enganado, em 2006, onde estavam presentes Ozzy Osbourne e outros renomados. Recebi uma encomenda de uma produtora para preparar uma série de desenhos para ficar exposta no backstage e nos camarins dos músicos. Fiz então só desenhos com a temática do rock. Tenho essa exposição guardada lá em casa e com um desenho autografado pelo Ozzy. Vou arrumar um destino para ela, nem que seja virtual.
Daniela Aragão: E você já trabalhou com o universo infantil?
Mário Tarcitano: Algumas vezes. O desenho de humor até permite liberdade e em algumas ilustrações da Tribuna uso também a linguagem para criança, mas não tenho nenhum projeto pessoal nesse sentido.
Daniela Aragão: Sua ligação com a música se estende além dos desenhos, pois você também toca sax alto não é?
Mário Tarcitano: Gosto de música desde moleque, em Volta Redonda, no tempo em que as rádios tocavam boa música. Para a construção da CSN foram contratadas pessoas do Brasil inteiro, então a gente conhecia gente do Piauí, Maranhão, Goiás, Rio Grande do Sul. Meu bairro era um conjunto de prédios, cada um com dezoito apartamentos. Todos de funcionários da CSN, todo mundo se conhecia, uma molecada danada que brincava na rua de pé no chão.
Foi um caldo de cultura imenso, não só musical, em todas as áreas. Nesse bairro conheci meu amigo Tadeu, pandeirista de um grupo de Choro, liderado pelo irmão Carlos Henrique, que tocava samba e choro no cavaquinho e bandolim. Comecei a ir às apresentações deste grupo, depois nos ensaios e me chamaram então para fazer a percussão. Tocava ganzá, caixeta (instrumento de percussão típico de Choro). Comecei a ensaiar com eles, daí montaram outro grupo do qual passei a fazer parte, chamava-se "Língua de Preto". Com esse grupo de Choro, toquei no Planetário da Gávea e na Sala Cecília Meireles.
Esse envolvimento com a música, principalmente com a música instrumental, me levaram ao sax. Já trabalhando em Juiz de Fora, em 92, quando meu filho nasceu, vendi o instrumento, pois com um bebê em casa não dava para praticar. Fiquei muito tempo sem tocar. Em 99, quando o Dnar me levou ao Clube do Choro de Juiz de Fora, na Universidade do Chope, é que veio a vontade de retomar. Comprei outro sax e passei a tocar com a turma do Clube do Choro.
Daniela Aragão: Você poderia esclarecer aqui para os leitores a diferença entre charge e cartum?
Mário Tarcitano: A charge é um desenho crítico sobre um assunto que está em pauta no momento, portanto é perecível. Em geral os assuntos giram em torno da política e de seus personagens.
O cartum, é um desenho de humor voltado para a crítica do comportamento humano, e não é perecível em curto/médio prazo. O ser humano não muda assim tão rápido (risos). Se você pegar uma publicação de cartuns de 1980 verá que eles permanecem atuais.
Daniela Aragão: A charge prescinde de um mínimo de noção política do leitor.
Mário Tarcitano: Sem dúvida. Se eu fizer uma charge com um assunto sobre o qual o leitor não tenha nenhuma informação, não adiantaria ser o "papa da charge", que ele não iria entender. A charge é momentânea, e em poucos dias poderá não significar nada, pois virão outras notícias e aquele assunto já estará ultrapassado.
Daniela Aragão: Quais sãos os projetos atuais?
Mário Tarcitano: Tenho feito muita coisa: estou trabalhando na preparação do meu livro de charges e cartuns. Também tenho participado de eventos com caricaturas as vivo, com resultados muito legais e alguns projetos gráficos para publicações, CDs, etc.
Daniela Aragão: O que representa o desenho em sua vida?
O desenho não é tudo, mas é 100%, diria o filósofo Falcão. Não sei o que faria se não soubesse desenhar. Gosto de tantas outras atividades... mas o desenho, a arte de uma maneira geral, me dá elementos para que eu seja uma pessoa melhor. Criar usando o desenho me exercita, mais do que a habilidade das mãos, a habilidade do olhar. Não apenas o olhar sobre as formas, mas o olhar mais profundo sobre tudo, sobre a sociedade e suas manifestações.
- Entrevista com o compositor e cantor Carlos Fernando
- Entrevista com a fotógrafa Nina Mello
- Entrevista com o multi-instrumentista Chadas Ustuntas
Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.
Entre na comunidade de notícias clicando aqui no Portal Acessa.com e saiba de tudo que acontece na Cidade, Região, Brasil e Mundo!