Feliniando II
Em crônica recente deixei explícito meu amor pelos gatos. Pensei ingenuamente que a necessidade de contar mais peripécias felinianas fosse ficar resguardada a partir de então para um pequeno caderno, que comprei aqui em Teresina. Mudo interlocutor o qual transformei numa espécie de diário em que registro minhas impressões nessa terra do sol que jamais sai de cena. Sou apaixonada por diários, livros de relatos, biografias, tudo o que se refira a auto-escrita sempre me fascinou. Demorei alguns dias até ter coragem e dar concretude e importância ao meu próprio dizer, visto que registrar impressões quase cotidianamente e em estado de segredo inconfessável foi uma experiência que vivenciei na adolescência, por volta dos treze até os dezesseis anos.
Sendo sincera, na adolescência eu e minhas colegas transgredíamos o pacto de fidelidade que em geral se trava na escrita de um diário, ou seja, prometemos por medo, vaidade, tradição, fetiche ou qualquer outro motivo, guardarmos nossos maiores segredos somente entre nós e o papel. Meninas sapecas e plenas de segredos partilháveis, feríamos todo o glamour da escrita inconfessável ao dividirmos com total inocência e despudor nossos segredos que julgávamos descobertas sublimes. Nosso deleite maior consistia em colarmos palitos de picolés, embalagens de bombons (sonho de valsa roxo), caixinhas de chicletes Adams e tudo o mais que eternizasse em nossos frágeis e afoitos corações as primeiras epifanias no vasto, inquietante e perturbador universo do amor. Numa das páginas eu colava com cola Cascola a caixinha de chicletes Adams, presenteada por um menino o qual tinha dado não mais que três longos beijos demorados. Esse "imenso", inusitado e caloroso acontecimento rendia páginas de impressões escritas, perfumadas pelo odor de menta conservado pela caixinha.
Batizei meu diário teresinense de Sol, palavra que considero bela por seu poder de síntese, sonoridade e amplas sugestões. Pois bem, flanando nas imediações do bairro em que resido ultimamente, me deparo com a exótica cena da comunhão entre gatos e urubus. Felinos brancos, caramelados, pretos, acinzentados, rajados dividem a calçada com os urubus sem o menor conflito. Os grandes pássaros pretos, como nobres anfitriões do espaço, me cedem gentilmente licença e me perco por instantes na elegância indiscreta desses "vagabundos", que com suas negras e esfarrapadas casacas são Carlitos com asas rasas.
O maestro soberano Antônio Carlos Jobim era um apaixonado entendedor de pássaros em sua diversidade de espécies. Um de seus mais lindos discos chama-se simplesmente "Urubu" e traz em destaque na capa a foto de um urubu voando sobre um espaço pleno de azul. E os urubus passeiam entre os girassóis, já dizia Caetano.
Por onde anda Florbela? Essa pergunta cansei de me fazer e de responder aos poucos que a conheceram e sentem saudade. A linda gatinha tricolor que resgatei e trouxe para minha casa com desejo imenso de criá-la, com todas as minhas reservas de amor e carinho, permaneceu comigo por pouco tempo. Numa curta viagem de uma semana, deixei-a sob os cuidados (remunerados) de uma vizinha, que me ofereceu todos os seus préstimos com garantia de carinho, cuidado e responsabilidade. Quando retornei numa noite de domingo e abri rapidamente a porta de minha casa eufórica de saudade da bichinha, não a encontrei.
Chamei por Florbela vasculhando todos os cantos de meu pequeno apartamento, decidi ir até a entrada dos outros prédios vizinhos que compõem o condomínio, até chegar a calçada externa do grande portão de entrada. Nada, nada, nada de Florbela.
No dia seguinte, a "cuidadora" sem a menor expressão de pudor ou arrependimento, disse friamente que por descuido deixou a porta aberta enquanto renovava a ração de Florbela na vasilha. Argumentou não ter pressentido sua fuga. História para lá de mal contada e que me fez insistentemente procurar durante semanas por minha querida felina embaixo dos carros, nos canteiros do condomínio, próximo as lixeiras, entre as árvores ... até que o desânimo e aperto no coração se tornaram maiores que minha forte insistência.
Por volta das duas da tarde de uma quarta invariavelmente solaríssima, tive a miragem de haver finalmente encontrado Florbela debaixo de um dos carros do condomínio. Estiquei- me no chão até conseguir encontrar suas patinhas e finalmente seu corpinho. Muito amorosa, espreguiçou-se em meu colo evidenciando a saliência de uma arredondada barriga. Não era Florbela, mas uma linda e graciosa felina com pelagem branca e cinza e vivíssimos olhos esverdeados. Seres humanos assim como os animais são insubistituíveis, mas subitamente meu coração bateu mais forte com o afago que me trazia por instantes o sonho do amor substituível.
Levei a barrigudinha para casa, banhei-a e dirigi-me no dia seguinte ao veterinário do bairro, para me certificar se a gatinha carregava outras vidas em seu ventre, ou se padecia de verme e desnutrição. Na chegada a minha casa ela devorou sem quase fazer interrupções três cheias vazilhas de ração e um pote de louça cheio de água. Já devidamente nomeada, Capitú seria mamãe pela primeira vez, dado o adiantado da hora. Uma púbere que não ultrapassava cinco meses e meio deve ter caído nos cortejos sedutores dos vários gatos que circulam na área. Disseram-me que o suposto pai seria o gato "chorão", um lindo felino inteiramente caramelado e viril que comanda a área de meu condomínio. É uma espécie de Gato de Botas, que deixa as felinas todas serelepes.
A barriguinha de Capitú a cada dia crescia mais, mais e mais e ela se portava como uma gestante sonolenta, gulosa e preguiçosa. Pedia-me colo para colocá-la em minha cama, pois não tinha mais forças para dar seus saltos. Espreguiçava-se toda com a barriguinha para cima ronronando de satisfação solicitando-me massagens. A emoção de tornar-me vovó aliada a total inexperiência no mundo da maternidade felina, muitas vezes me deixou varar madrugadas preocupada com a mamãe que apresentou numa noite pequeno sangramento e uma "falação felina" compulsiva.
Gatos são surpreendentes, misteriosos e sedutores. Justamente na noite em que não dormi em casa e retornei pela manhã, demorei a encontrar Capitú. Fui me guiando por uns miados finos que me levaram até embaixo da cama, lá estava ela com seu três filhos ainda envoltos pelo sangue da vida, que ela cuidadosamente e com sua total sabedoria instintiva ia limpando. Capitú olhou para mim com intensa cumplicidade, lambeu meu dedo indicador e comungamos juntas o presente da vida.
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Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.
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