Entrevista com a professora de literatura Marisa Timponi
Daniela Aragão: Como começou sua relação com a palavra?
Marisa Timponi: A descoberta da palavra, na verdade, foi um encanto pela palavra que tive, pois no meu quarto havia uma pequena biblioteca com os livros de meu pai. Eu ainda não sabia ler e achava aquilo tão bonito que me despertava uma vontade imensa de descobrir. Minha vontade de aprender a ler era tão grande que acabei aprendendo antes de entrar na escola.
Daniela Aragão: Você aprendeu a ler em casa?
Marisa Timponi: Aprendi a ler com minha madrinha Glória. Ela era uma professora aposentada, que falava tudo embolado e, mesmo assim, eu conseguia encontrar as palavras em meio a uma mistura de sons. Sua linguagem era nasalizada, mas com essa audição se deu meu primeiro aprendizado. Por meio de outra madrinha, Ione, tive acesso aos livros da editora Bloch, que ela trazia do Rio de Janeiro. Este fato consistiu num privilégio, visto que nasci e vivi parte de minha infância em São Geraldo, uma cidade no sopé da serra mineira. Sou filha de ferroviário, nasci, vivi e cresci no barulho do apito do trem. Nessa cidadezinha tive também a oportunidade, desde pequena, de ler a coleção dos irmãos Grimm.
Daniela Aragão: O ambiente doméstico a colocou em contato também com outras manifestações artísticas que lhe serviram como estímulo?
Marisa Timponi: Minha mãe costurava e eu fazia costura de mão: ficava ao seu lado, ouvindo novela transmitida pelo rádio. Isso foi uma tradição da época muito constante, daí meu interesse pelas novelas, os romances, a literatura. Adorava ouvir novela de rádio e, no fim da tarde, não perdia o programa do Tio Jãojão, “bom e carinhoso e contava lindas histórias do tempo em que os bichos falavam”. Isso me marcou muito. Também eu entrava em estado de êxtase, quando via um poema. Deslumbrava-me com a palavra falada e a palavra escrita. O desenho da palavra no livro me seduzia imensamente. Trago, em meu percurso de encantamento pela literatura, a apreciação pela conjunção da palavra em três instâncias: ouvida, falada e escrita.
Daniela Aragão: A entrada na escola foi estimulante para a manutenção de seu fascínio pelos livros?
Marisa Timponi: Com certeza. Quando entrei para a escola, as aulas começavam às sete e eu chegava às seis, pois curtia mexer com os livros, as palavras e também os números. Tive uma professora, dona Laura Casulari, que trabalhava muito conosco a necessidade da leitura. No ofício de bibliotecária de sala, lia os livros que existiam na biblioteca que tínhamos em classe, com a satisfação de contar as histórias para os colegas. Aos onze anos li, pela primeira vez, uma grande obra da literatura brasileira escrita por Lima Barreto, “Triste fim de Policarpo Quaresma”.
Daniela Aragão: Desde pequena você já sentia que seu trabalho seria relacionado com o universo da literatura?
Marisa Timponi: Sim. Recordo-me de que em São Geraldo fiz, juntamente com alguns colegas, um jornal impresso em papel de pão. Rodava-se na escola o papel em mimeógrafo, pegávamos uma espécie de carbono, o papel de pão e montávamos o jornal da cidade, que era construído com estes recursos improvisados. Nele colocávamos poemas, coisas assim. Esta época me remete também ao escritor Rosário Fusco, que era de São Geraldo e morou durante muito tempo em Cataguases. Ele voltou a sua cidade natal e me convidou para estudar na França, oferecendo-me hospedagem: foi a primeira grande oportunidade que tive, mas desta vez ainda não fui.
Daniela Aragão: O ofício de professora começou em São Geraldo?
Marisa Timponi: Sim, em São Geraldo eu já dava aula de português e literatura. Durante o Curso Normal, lecionei português para meninos de quinta e sexta série. Quando terminei o primário, ganhei o prêmio de melhor aluna da rede ferroviária do Brasil e fui presenteada com o livro “Poço do Visconde”, de Monteiro Lobato. Isso foi um grande prêmio em minha vida. Ganhei algumas medalhas também e, certa vez, perdi o primeiro lugar apesar das melhores notas, pois disseram que eu falava demais. Fui para o segundo lugar, devido ao fato de que recebi nota oitenta em comportamento. Questionei se a medalha era atribuída a quem falava ou não falava ou a quem tinha melhor aproveitamento. Questionadora? Sempre. Direito de me indignar? Sempre.
Daniela Aragão: Em seguida você foi cursar letras?
Marisa Timponi: Fiz letras na Universidade Federal de Juiz de Fora. Numa luta contínua para vencer, consegui um trabalho para lecionar no antigo colégio Pio XII. Em seguida ganhei uma bolsa da Capes para fazer o mestrado em literatura brasileira na UFF. Esse mestrado foi muito importante, pois marcou minha descoberta do poeta Murilo Mendes. Fui uma das primeiras pessoas a escrever sobre ele, inclusive essa informação consta na obra completa de Murilo Mendes publicada pela Nova Aguilar. O tema do estudo foi a invenção na poética de Murilo Mendes. Foi um trabalho ousado, considerado de livre docência pelo Conselho Científico, pois passei por toda a produção poética de Murilo. Este poeta tornou-se um carro chefe nas atividades que fui desenvolvendo posteriormente.
Daniela Aragão: Seu trabalho sobre Murilo Mendes é uma referência.
Marisa Timponi: É um dos primeiros escritos sobre este grande poeta; antes despontou a pesquisa da professora Laís Correa de Araújo, que é considerada a biógrafa dele no Brasil. A minha dissertação esteve guardada: a revi agora e pretendo publicar em breve.
Daniela Aragão: “A trama poética”, livro sobre Murilo Mendes escrito por você em parceria com a professora Leila Barbosa é outro estudo?
Marisa Timponi: Este é resultado de vários trabalhos. É posterior à dissertação e uma parte dele relata a minha experiência como gestora no Centro Murilo Mendes. Desenvolvo uma pesquisa chamada “História literária de Juiz de Fora” desde 1980, ao lado da professora Leila Barbosa, que é a minha coautora. É uma pesquisa vinculada à universidade e mantemos, até hoje, esses laços com a cidade. Criamos o projeto “Murilo Mendes vai à escola”, que abrangeu mais de vinte mil alunos. Todo o ano também fazíamos eventos em comemoração ao aniversário de Murilo Mendes. Nesta época eu realizava junto à universidade mostras de trabalhos de pessoas da cidade, como foi o caso de sua exposição, Dani, sobre Elis Regina.
Daniela Aragão: Havia um espaço no Centro de Línguas que era aberto para as artes em geral. A mostra que realizei Elis reluz, se deu como uma espécie de “trabalho final” da disciplina do professor Gilvan Procópio. Como estudávamos a literatura contemporânea e seus desdobramentos, ele me cedeu o espaço para que eu pudesse mostrar para o público da universidade e a comunidade o meu acervo que estava guardado em casa. Era composto de toda a discografia da cantora, programas de shows, vídeos. Já faz quase vinte anos isso, foi em 1997.
Marisa Timponi: Eu estava lá. Sempre fiz muitas mostras, depois exerci a função técnica de gerente de cultura na universidade. Em parceria com Leila Barbosa, desenvolvemos um projeto chamado Zona literária, na faculdade de comunicação. Ali revelávamos poetas, como o Anderson Pires e André Monteiro, que hoje são professores de literatura brasileira na UFJF. Desenvolvemos também um trabalho no ICHL, que era dedicado a autores. Numa apresentação consagrada a Manuel Bandeira, apresentamos para a comunidade o poeta Edimilson de Almeida Pereira, que era nosso aluno de letras. Ele destacou-se muito por sua reflexão sobre o valor do sentimento na pele. Recordo-me de uma frase citada por ele sobre o poeta Bandeira: “É preciso merecer morrer”. Jamais me esqueci de quando e o que ele falou no anfiteatro do ICHL como nosso aluno.
Daniela Aragão: Como iniciou sua parceria literária com a professora Leila Barbosa?
Marisa Timponi: Leila entrou em minha vida mais efetivamente através da relação com o professor Eduardo Camarinha, que, como seu orientador, a indicava como quem sabia tudo sobre a ABNT. Ela era sua aluna na UFRJ, muito competente, metódica, disciplinada e conhecedora com propriedade dos meandros das normas técnicas. Leila auxiliou-me na parte referente à adequação às regras técnicas na composição final de minha dissertação de mestrado. Leila fez sua dissertação de mestrado sobre Belmiro Braga, que é seu tio-avô e, como Belmiro é um capítulo do livro de memórias de Murilo, A idade do serrote, onde o poeta conta que aprendeu a versejar com Belmiro Braga e que frequentava sua biblioteca na Av, Rio Branco, unimo-nos então principalmente em função dessas conexões literárias de Belmiro Braga com Murilo Mendes.
Daniela Aragão: Quantos anos de parceria literária?
Marisa Timponi: Criamos, em 1980, o projeto “História Literária de Juiz de Fora”. Portanto trabalhamos em parceria há trinta e cinco anos. Depois de certo tempo, passamos a publicar um livro por ano, exceto em 2010, ano em que publicamos cinco livros, somando os didáticos em equipe com a Cláudia Miranda.
Daniela Aragão: Vocês trabalharam com o resgate de escritores que foram para o cânone a exemplo de Murilo Mendes e Pedro Nava e também com outros que ficaram na periferia e necessitavam ser mostrados.
Marisa Timponi: Com certeza, como é o caso de Belmiro Braga. Ele é um autor que possui reconhecimento e um dos fundadores da Academia Mineira de Letras. Publicamos a obra “Montesinas”, para celebrar o centenário de Belmiro Braga. Por sermos colecionadoras e pesquisadoras da história literária de Juiz de Fora, começaram a chegar até nós documentos raros sobre a cidade, como foi o que ocasionou a publicação “Machado Sobrinho: notícias da imprensa”, que fizemos sobre a criação da Academia Mineira de Letras, pois Machado Sobrinho registrou, como seu secretário, a fundação da Academia, nascida em Juiz de Fora e que aqui permaneceu durante cinco anos.
Daniela Aragão: Fale sobre o belo livro que lhes rendeu a indicação para o prêmio Jabuti em 2010.
Marisa Timponi: Foi um livro feito sob encomenda, custeado por um mecenas e que inaugurou o selo do MAMM (Museu de Arte Murilo Mendes) como Editora. Este mecenas é um apreciador incondicional de arte, tendo inclusive ocupado a função de Presidente da Associação de Críticos de Arte. A proposta inicial era de que fizéssemos um livro, atualizando os escritos trocados entre Murilo Mendes e Ismael Nery.
Davi Arriguci havia publicado um livro de nome “Recordações de Ismael Nery”, baseado nos textos escritos por Murilo Mendes, que consistiam nas recordações de Ismael Nery. Ao invés de fazermos as recordações de Ismael Nery, ou seja, a proposta que o mecenas havia nos encomendado, resolvemos fazer a recordação de Ismael Nery apreendida no resgate de todos os escritos de Murilo Mendes que se referiam a Ismael. Conciliamos com a parte iconográfica do MAMM que nos possibilitou o registro de imagens no livro. Temos coletadas e reunidas neste livro preciosidades, como o artigo escrito por Bernardo, filho de Jacinto Brandão. Bernardo tematiza a questão do essencialismo em Ismael Nery. Publicamos também texto de Angela Correa que aborda a presença do corpo em Ismael Nery.
Pesquisamos na Biblioteca Nacional, no Seminário Santo Antônio, na Biblioteca da Igreja da Glória, em acervos particulares e no acervo do MAMM e encontramos textos inéditos que inserimos no livro.
Daniela Aragão: Quanto tempo demandou entre a pesquisa e conclusão do livro “Letras da Cidade”?
Marisa Timponi: Cerca de vinte anos. Aprovado o projeto de pesquisa “História Literária de Juiz de Fora”, começamos a coletar os autores da cidade, desde os já falecidos até chegarmos aos mais novos, aqueles que foram nossos alunos como o Edimilson de Almeida, Fernando Fiorese, Rodrigo Barbosa. Hoje esses se tornaram grandes mestres da palavra e como diz Guimarães Rosa “Mestre é aquele que de repente aprende”. Os meninos cresceram e muito nos orgulham.
Daniela Aragão: Em 2013, você e Leila publicaram o belo “Olhar poético sobre Juiz de Fora”. Um livro que prima pela beleza plástica que mostra Juiz de Fora no passado e presente com a evidência de nuances cromáticas contrastantes.
Marisa Timponi: Este livro traz o prefácio de Toninho Dutra, em que ele aborda a nossa travessia de paixão pela terra. Ele enfatiza esse voo caleidoscópio que eu e Leila apreciamos fazer pela cidade. Convidamos a professora e artista plástica Valéria Faria para realizar as ilustrações. No decorrer do processo, ela acabou se tornando nossa coautora, pelo envolvimento e qualidade de seu trabalho. Nosso objetivo, desde o início da idealização deste livro, seria realizá-lo num caráter dialógico. São textos que falam de Juiz de Fora acompanhados por imagens antigas da cidade, com sobreposições de imagens atuais. Ela fez a imagem a partir do texto e, em suas colagens, apresenta a Juiz de Fora de hoje misturando-se à de ontem. A obra avança para outras conversas, outros olhares.
Daniela Aragão: É uma obra em progresso?
Marisa Timponi: Certamente, é uma obra em progresso bem na linha de Oswald de Andrade, ou o work in progress do Cummings. Neste livro falamos de pontos importantes da cidade como a Rua Halfeld, o Museu Mariano Procópio. Há a presença de discursos imagéticos variados como selos, mapas. Utilizamos muito as imagens do blog “Maria do Resguardo”, ao qual agradecemos no livro. Muitos colecionadores e fotógrafos da cidade também nos ajudaram, como Humberto Nicoline.
Daniela Aragão: Como você vivencia a recepção de Juiz de Fora ao trabalho de vocês, que contribui substancialmente para a manutenção da história literária da cidade?
Marisa Timponi: Com muita satisfação e emoção. Eu e Leila Barbosa ganhamos várias condecorações pelo reconhecimento de nosso trabalho dedicado à literatura de Juiz de Fora. Além dos 108 autores juiz-foranos reunidos em “Letras da Cidade”, realizamos um percurso pela literatura que vem desde Batista de Oliveira, passando por Machado Sobrinho, Oscar da Gama, Menelick de Carvalho, Rangel Coelho, Juvenal de Meneses Costa, Panisset, Cosete de Alencar, Cleonice Rainho. Dona Cleonice, por exemplo, nos doou seu acervo em vida e repassamos para Wanderley de Oliveira o material que nos enviou: ele ficou cuidando da obra de Cleonice. Dada à quantidade de autores, fica complicado cuidarmos do acervo de cada um e de todos. Deve-se levar em conta que não ignoramos a literatura que se faz hoje em Juiz de Fora. Resgatamos o passado e chegamos até aos meninos, ou seja, os contemporâneos que estão em plena atividade como: Iacyr Anderson, Fernando Fiorese, Ruffato, Knorr, Zé Santos, Ricardo Rizzo, Edimilson de Almeida, entre outros. Por aí resgatamos a história de uma vida na cidade.
Daniela Aragão: E os novos projetos?
Marisa Timponi: Pretendo publicar o estudo que fiz para minha dissertação de mestrado sobre Murilo Mendes e realizarmos a adaptação de sua obra para crianças. Trabalhamos por Murilo Mendes no Brasil e no exterior. Levei Murilo Mendes para a Grécia num projeto em parceria com a UFMG. Falei em Atenas sobre o texto de Murilo “Novíssimo Prometeu”. Leila foi a Cuba também divulgar a obra de Murilo Mendes, numa ocasião em que não pude acompanhá-la.
Daniela Aragão: O que é a literatura para a sua vida?
Marisa Timponi: É esse mundo encantado, esse divã que é a literatura no qual sempre me deitei, me consultei e resolvi todos os problemas. Gostaria de colocar em minha lápide “Sempre foi feliz”. Como diz o poeta Murilo Mendes: “Sinto-me compelido ao trabalho literário pelo desejo de suprir lacunas da vida real”.
- Am I blue?
- Entrevista com o professor e poeta Elio Ferreira
- Entrevista com o poeta e professor Anderson Pires
Fotos: Arquivo pessoal
Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.
Entre na comunidade de notícias clicando aqui no Portal Acessa.com e saiba de tudo que acontece na Cidade, Região, Brasil e Mundo!