Juliano Nery Juliano Nery 11/02/2014

Cabeça de Peixe

Cabeça de PeixeEstava quase chegando na bifurcação das BRs 116 e 267, na altura de Leopoldina, com o estômago nas costas, após longa viagem, quando vi uma bela placa, indicando uma deliciosa iguaria: "traíra desossada e sem espinhos". Diferentemente da surpresa com a água de coco, da crônica passada, com a traíra não houve surpresas. Estava uma maravilha, ainda mais com a fome em que me encontrava. O que chamou a atenção desse humilde observador, no entanto, e que vale a crônica, foi o diálogo entre um pai e uma pequena criança, acerca do já mencionado prato.

"Papai! A traíra é um peixe?", indagou o menino, que aparentava seus oito anos.

"É, sim, meu filho!"

"Então, não quero mais comer essa tal de 'traíra'!", aborreceu-se.

O pai tentou contornar a situação.

"Mas, porque você vai desistir? Estava com fome agorinha mesmo e ainda nem tocou no prato..."

"É que eu consigo ver direitinho, o peixe mortinho na bandeja...", apontando para o delicioso cadáver de peixe frito na vasilha metálica.

O pai deu uma manjada na bandeja. E eu também estiquei a cabeça para olhar. O menino tinha toda razão. Bruta peixe empanado e frito, com cabeça e tudo. Dava até para imaginá-lo nadando nas águas de um rio qualquer, antes de parar em alguma emboscada e ser servido naquela mesa.

O pai tentou dissuadi-lo estabelecendo comparação com outros animais comestíveis.

"Esquece disso, rapazinho! Você come bife de boi sem reclamar, ora essa!"

Tudo em vão. O menino não se fez de rogado.

"Mas, o bife não se parece com um boizinho, igual a esse peixe..."

O pai ficou em uma enrascada.

"O que mais te impressiona no peixe e que tanto te impede de comer?"

O esperto garotinho examinou cuidadosamente a posta de peixe e não teve dúvida.

"Essa cabeça do peixe me assusta. Ainda mais, por conta do buraquinho dos olhos..."

"Então, deixa que eu pego essa parte e você fica com o corpo do peixe", solucionou, de forma prática, o zeloso pai, colocando a cabeça no prato e servindo o filé do peixe empanado para o menino.

Vendo o pai se deliciar em chupar o osso da cabeça do bicho e entre uma garfada e outra do filé, o menino deixou o recado.

"Papai não tem dó, não... Nem o cérebro do peixe, ele respeitou", lamentou-se aos céus.

O pai deu um sorriso amarelo para o filho. E eu, que havia pedido a mesmíssima iguaria e ainda me aproveitava do filé, depois daquele comentário, pedi a conta e parti sem mexer na cabeça da traíra.

Juliano Nery acredita que Minas Gerais é mais que um Estado. É um estado de espírito. Leopoldina pode ser encontrada na latitude 21° 31' 55" S e longitude 42° 38' 34" O


Juliano Nery é jornalista, professor universitário e escritor. Graduado em Comunicação Social e Mestre na linha de pesquisa Sujeitos Sociais, é orgulhoso por ser pai do Gabriel e costuma colocar amor em tudo o que faz.

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