Na barbearia
Nos primeiros anos do milênio, quando ostentava uma bela cabeleira de bom comprimento, inspirado nos ídolos do rock and roll e em uma rebeldia juvenil mal explicada, possuía fidelidade a uns poucos salões de beleza, para fazer o trato da juba.
Olhando no espelho, vejo que não fez muito sentido tanta exigência em utilizar o serviço de cabeleireiros e barbeiros selecionados. O tempo foi passando de forma implacável. Com ele, a testa foi crescendo e a telha da cobertura raleando. E os efeitos da calvície vieram a me tornar um leviano. Quando o assunto "corte de cabelo" entra em pauta, qualquer ser vivente com uma máquina semiprofissional nas mãos está habilitado a fazer o serviço, já que não há muito como errar...
Imbuído desse espírito foi que, no fim de um expediente no município de Carangola recorri a uma barbearia mais próxima de casa, no centro da cidade, perto da praça Tiradentes, para dar um trato no visual. Ou seja, pente de 3 mm nos pontos mais prejudicados e de 2 mm nos pontos em que não existam "buracos". O barbeiro, um bigodudo, já me enforcava com aquele lençol destinado a cair os pelos, quando entrou um menina com uniforme de escola e carnê de rifa na mão.
"O senhor gostaria de comprar uma rifa?", dirigiu-se a mim, que já sou vermelho e ainda estava mais rubro por conta do "enforcamento" com o lençol.
Acenei para o barbeiro afrouxar um pouco a gola do lençol, enquanto pensava "tanta gente na barbearia e a menina oferece justo pra mim". Já menos assoberbado, meneei com a cabeça, um taxativo "não". Se há uma coisa de que não gosto é de rifa. E só compro em último caso.
A menina não se fez de rogada e virou para o barbeiro.
"E o senhor? Vai comprar uma?"
"Do que é a rifa?"
"É para a coroação de Nossa Senhora. Vale uma televisão!", argumentou.
"Tudo o que eu queria era uma rifa de Nossa Senhora. E tenho certeza de que vou ganhar a televisão! Quanto custa?"
"Dois reais."
"Veja logo duas!"
A menina saiu da barbearia com um sorriso no rosto, contando o dinheiro. O barbeiro, enfim, voltou ao seu ofício, enquanto ainda conversava.
"Essas crianças..."
Não perdi a oportunidade de realizar uma pequena ironia.
"E o senhor parece gostar muito de rifa..."
O homem caiu na risada com o meu comentário. Mas, complementou, respondendo.
"Faço isso com todas as crianças que vem aqui. Só esse ano, já devo ter comprado uma pilha de rifa dessa molecada. Para ajudar na igreja, na escola, no asilo, no orfanato... Na verdade, nem sei quando vai correr o bilhete, se ganhei ou se perdi..."
"Então, por que você compra?", fiz a pergunta mais óbvia.
O homem não titubeou.
"Porque deve ser muito difícil para um menino entrar aqui dentro e superar a timidez para me vender essas rifas", disse, segurando os papéis que a menina acabara de lhe entregar. "Tanto esforço, não pode passar em vão: pensa o quanto deve ser triste pra essa criatura entrar no comércio e não conseguir vender uma rifa de dois reais pra ninguém!"
Fiquei sem palavras. Ele, não.
"E digo mais: aqui não sai ninguém com a mão abanando!"
Após aquele insuflado discurso e exemplo de generosidade, confesso que fiquei um pouco envergonhado com minha falta de sensibilidade com as rifas que passam pela minha vista. Passei até a comprar algumas, é verdade. Tudo a partir da lição naquela barbearia.
Juliano Nery acredita que Minas Gerais é mais que um Estado. É um estado de espírito. Frei Inocêncio pode ser encontrada na latitude e longitude 42° 01' 44" O
Juliano Nery é jornalista, professor universitário e escritor. Graduado em Comunicação Social e Mestre na linha de pesquisa Sujeitos Sociais, é orgulhoso por ser pai do Gabriel e costuma colocar amor em tudo o que faz.
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