Ana Luísa Amaral leva humor e erudição a versos de 'Mundo'

Por LUISA DESTRI

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A metáfora do mundo como um livro a ser lido é central à cultura ocidental. De matriz muitas vezes religiosa, com frequência ganha forma na ideia de que Deus se expressa através das coisas físicas, como é frequente ocorrer na Bíblia. Mas atravessou séculos de cultura também em versão leiga ?sempre que se buscou, por exemplo, nos animais e na natureza alguma espécie de ensinamento racional para a vida humana.

É em relação com esse passado que se coloca, desde o início, "Mundo", livro da premiada poeta portuguesa Ana Luísa Amaral, que morreu nesta sexta (5), aos 66 anos. É o que sugere já a primeira composição, "Do Mundo", que parece mesmo ter intenção de abertura, convidando à leitura e de certa forma a encaminhando. Por causa de sua importância para a totalidade aspirada pelo conjunto, a resenhista pede licença para comentá-lo de forma mais demorada.

A pergunta surge em uma de suas estrofes: "A que sabe esta ceia/ feita de peixe e vinho,/ tão metáforas óbvias/ transportadas em cor ao vosso tempo?", para então ser relativizada na seguinte: "Mas não há de ser ceia,/ pois que se vê azul atrás de mim,/ e as nuvens muito brancas são de sol", e ainda na outra: "E o peixe jaz, intacto, no prato,/ ou seja, não comi: ainda não comi". O vocabulário é cristão, mas se constrói uma narrativa que parece negar seu sentido simbólico, como quem dissesse: ora, não se trata de uma ceia pois é ainda dia, isto será um almoço assim que se começar a comer o peixe.

Os versos assim continuam, em tom levemente irônico, negando outros sinais de sacralidade: o halo, as asas, a expressão em êxtase e união das mãos. Convida-se à partilha, então, não de um segredo ou revelação -mas do "sossego". A página seguinte anuncia o título da primeira seção ?"Quase em écloga, gentes"?, integrada por poemas não sobre pessoas propriamente, mas sobre a formiga, a pega, o pavão, o vento, a flor...

Não é preciso ir além na análise cerrada para demonstrar o jogo constante que se estabelece com a erudição. Convocando a todo momento leitores que sabem o que esperar das metáforas ou das expressões poéticas mais tradicionais, o livro não contempla integralmente essas expectativas, mas induz a pensar a respeito. E muitas vezes é da própria poesia que se trata, como em "Girassol": "se pousar nesta folha/ um girassol/ e o quebrar// o que sobra é o sol/ dentro do céu -/ parado -// ou o papel/ aturdido e em/ vertigem?".

Retratando desde pequenos objetos domésticos, como uma faca e uma agulha, até um objeto público mais grandioso, como a estátua de uma praça, os poemas não se resumem à metalinguagem, porém. A sequência parece ir se abrindo cada vez mais para a dimensão histórica, o que amplia também o alcance do volume. Caberá ao leitor se perguntar, então, que mundo é este que o livro quer ensinar a ver?

As composições dedicadas a figuras humanas talvez ajudem a buscar uma resposta mais precisa ?caso de "As Cores da Servidão", sobre um casal que entra no avião acompanhado do filho, carregado pela babá, e "Campo para Cracóvia", a respeito das lembranças despertadas em um vagão de trem. Construídos como cenas narrativas, procuram buscar sinais do passado no tempo presente, o que, nos casos mais interessantes, tem dimensão coletiva, ou, como em "Genealogias, impressões e voos", une o âmbito pessoal ao histórico.

Autora de dezenas de livros de poemas, Amaral escreveu também ficção, teatro, infantis e ensaios e foi professora aposentada da Faculdade de Letras do Porto. Tem diversos trabalhos já publicados no Brasil, como "Arder a Palavra e outros Incêndios" (Oficina Raquel, 2020) e "Lumes" (Iluminuras, 2021). "Mundo" é um dos primeiros títulos editados pelo braço brasileiro da prestigiosa Assírio & Alvim, que em maio lançou, em Portugal, "O Olhar Diagonal das Coisas", reunião de toda a poesia da autora.

Para o leitor brasileiro acostumado a uma poesia contemporânea tributária de nosso modernismo, a dicção portuguesa, com seu involuntário efeito de elevação, é sempre capaz de gerar estranhamento. "Ode ao Cigarro", cujas oito estrofes se fazem de doses iguais de humor e lirismo, constrói-se de uma irreverência que o português europeu não acompanha linguisticamente à nossa maneira. Que o sotaque não impeça de ouvir a intensa modulação de afetos que há no livro e que acaba por mostrar como erudição e sensibilidade não são excludentes.

MUNDO

Preço R$ 39,90 (88 págs.)

Autor Ana Luísa Amaral

Editora Assírio & Alvim

Avaliação Ótimo