Michelle Zauner, do Japanese Breakfast, liga morte da mãe a comida coreana em livro
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A primeira palavra de Michelle Zauner foi em coreano: "umma". A versão em inglês, "mom", veio depois.
A dualidade cultural define a vida e obra da musicista e escritora de 33 anos, que fez fama primeiro no circuito de música independente dos Estados Unidos, com a banda Japanese Breakfast, e agora lança seu primeiro livro no Brasil.
O grupo, que mistura lo-fi, pop e guitarras distorcidas, estará na primeira edição brasileira do festival Primavera Sound, que acontece nos dias 5 e 6 de novembro. Já "Aos Prantos no Mercado", seu livro de memórias que ficou 56 semanas entre os mais vendidos do New York Times, chega antes ao Brasil, em outubro, pela editora Fósforo.
A morte marca toda a obra de Zauner. Apareceu primeiro em Psychopomp, disco de estreia de sua banda, e no livro surge a partir da ausência da mãe, que traz consigo o medo de perder a ligação com as tradições da Coreia do Sul.
Filha de uma coreana e um americano branco, a autora nasceu em Seul e cresceu no estado do Oregon, nos Estados Unidos. Nunca pertenceu a qualquer um dos dois mundos. Como diz em entrevista a este jornal, só no palco é onde se sente em casa.
"É como se fosse um espaço efêmero e passageiro de pertencimento completo. Estou sempre em busca desse sentimento."
Mas nem todo show é igual. "Tocar em Oregon é especial e nostálgico. São palcos nos quais nunca esperei me apresentar, que me formaram na adolescência", diz. "Mas sempre vai ter uma parte de mim que está em busca da aprovação do público coreano."
A música, conta em "Aos Prantos no Mercado", foi refúgio para a adolescente deprimida que vivia no Oregon. Seu primeiro violão foi um presente da mãe que, no entanto, morreu esperando a filha desistir da carreira artística --a imagem dela está na capa do primeiro disco do Japanese Breakfast, lançado dois anos após sua morte.
"Quando eu me machucava, minha mãe gritava comigo", diz agora. "Havia formas de parentalidade que pareciam cruéis e eram difíceis de entender, porque eu não tinha representatividade de uma mãe coreana na mídia ou entre os meus amigos."
Para ela, ser mestiça é viver uma fratura. Quando visitava a família na Coreia, Zauner era elogiada pelas pálpebras ocidentais --objeto de cirurgias plásticas naquele país obcecado com estética. De volta aos EUA, aturava colegas questionando sua nacionalidade. Chinesa? Japonesa? Por via das dúvidas, ela evitava fazer o sinal da paz com as mãos em fotos, com medo de ser confundida com uma turista asiática.
A mãe não compartilhava esse drama, escreve Zauner. "'Você não sabe o que é ser a única menina coreana na escola', expliquei a minha mãe, que ficou me olhando sem entender nada. 'Mas você não é coreana', ela disse. 'Você é norte-americana'."
"Muitas vezes, pessoas mestiças não se sentem apenas metade de duas culturas, mas partes inteiras de ambas", afirma. "É um sentimento lindo, mas não é minha experiência."
O conforto de Zauner com a cultura coreana vem da comida, um gosto partilhado com a mãe, Chongmi. Palavras como "gochujang", "danmuji", "ttukbaegis" compõem a paisagem dos corredores de um H-mart, mercado de produtos asiáticos e palco do primeiro capítulo do livro.
Desde que ficou órfã, é nessas lojas que Zauner chora, se perguntando se continua a ser coreana "se não sobrou ninguém para quem ligar e perguntar qual era a marca de alga desidratada que a gente costumava comprar", escreve.
As comidas que estreitaram os laços entre mãe e filha eram motivo de disputa durante o tratamento para o câncer. Zauner ofereceu os pratos favoritos de Chongmi a ela, mas nada abria seu apetite prejudicado pela quimioterapia. O corpo da mãe definhava. O pai, Joel, se ausentava cada vez mais.
Se a relação com a mãe foi marcada pela distância cultural, a criação ocidental também não a aproximou do pai.
A vida de Joel foi marcada por vício, em drogas na juventude e álcool na vida adulta. Zauner descobriu, ainda adolescente, do envolvimento do pai com prostitutas. Nunca contou à mãe, mas decidiu contar ao mundo em "Aos Prantos no Mercado". "Você precisa dar um passo atrás e observar se está apresentando as pessoas [em livros de memórias] de uma forma justa", diz. Ela sente que o fez.
Ao ler a obra, Joel não rompeu com a filha. Ela conta que outros autores de livros de memórias sempre dizem que aquilo que incomoda as pessoas retratadas é sempre surpreendente. Foi o caso do pai, que se incomodou com o fato de a filha ter dito que ele vendia carros usados na Coreia, quando vendia, na verdade, carros novos. "Ele ficou muito chateado com isso, mas não falou nada sobre o resto", diz Zauner.
A doença da mãe e a distância do pai aprofundaram mais o sentimento de fratura de Zauner. A gota d'água foi a chegada de Key, amiga antiga da mãe, para dar apoio durante o tratamento. Ela expulsou a jovem da cozinha e preparou uma panela de jatjuk, um mingau de arroz e pinoli reservado aos doentes. Chongmi consumiu com gosto, repetidas vezes. Key não repassou a receita.
Quando a mãe morreu, Zauner se aventurou em culinária complexa e luxuosa, na tentativa de ocupar o tempo. Tortas de frango, lagostas amanteigadas, lasanhas, nevascas de cranberry. Nada a satisfazia. O insosso jatjuk de Key rondava sua mente. Foi Maangchi, uma youtuber apelidada de "mãe coreana da internet" pelo site The Verge, que a ensinou a preparar a refeição.
"Algo foi desatado psicologicamente quando fiz esse prato. Confrontei a vergonha que senti por falhar com minha mãe, por não ter sido capaz de prover essa comida que ela precisava e até por não ter sido capaz de saber que era isso que ela precisava."
Zauner afirma ter repetido a receita algumas vezes quando se sentiu doente. Não é o tipo de prato que se encontra em restaurantes coreanos, diz, talvez nem em restaurantes na Coreia. Mas era isso que ela precisava.
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AOS PRANTOS NO MERCADO
Quando: Lançamento em 17/10
Preço: R$ 69,90 (288 págs.)
Autor: Michelle Zauner
Editora: Fósforo
Tradução: Ana Ban