'Doze Césares' faz do imperador Augusto um Dorian Gray às avessas

Por REINALDO JOSÉ LOPES

FOLHAPRESS - Para quem não sabe quase nada sobre os imperadores romanos, "Doze Césares", da historiadora britânica Mary Beard, talvez não seja a mais didática das introduções ao tema.

Não espere encontrar no livro resumos simples e claros das trajetórias de Augusto, Nero ou Calígula (até porque, hoje em dia, é para isso que serve a Wikipédia). Em vez disso, a obra de Beard apresenta uma análise deliciosamente nerd da maneira como as imagens dos césares moldaram as percepções que temos sobre poder e prestígio nos últimos 2.000 anos.

A abordagem é capaz de iluminar muitos aspectos do Império Romano mesmo sem detalhar os feitos de cada um dos autocratas que o regeram. Mas os raios de luz que ela lança atingem com intensidade similar períodos bem posteriores, como a Renascença, o século 19 e os anos 1930.

Afinal de contas, o ato de retratar os imperadores, de exibir suas imagens ou mesmo de fazer uma lista canônica dos senhores de Roma sempre foi um reflexo de como diferentes sociedades enxergavam a si próprias.

Foi só por meio de considerável licença poética, aliás, que os 12 césares do título do livro acabaram sendo entronizados na memória dos pósteros pelo historiador romano Suetônio, no começo do século 2o d.C.

Do grupo listado por Suetônio, o primeiro, Júlio César, nunca chegou a ser um imperador propriamente dito, enquanto os seis últimos, de Galba a Domiciano, não tinham relação nenhuma com a família de César e só ganharam o título porque a dinastia iniciada por ele foi completamente extirpada com a morte de Nero. E, é claro, Roma teve dezenas de imperadores depois deles.

Acompanhar as transformações na imagem pública de cada um dos césares é um jeito surpreendentemente transversal de compreender a história do Ocidente, porque a figura dos imperadores dava um jeito de se inserir nos aspectos mais insuspeitados da vida de seus súditos.

Se o mais óbvio hoje é imaginar que eles eram retratados apenas em bustos de mármore imaculado, essa ideia ignora, em primeiro lugar, a paixão do mundo antigo pela decoração colorida e, em segundo, a predominância da arte portátil em inúmeros elementos do cotidiano.

Pequenos retratos pintados, decorações de marfim em jóias, moedas e até forminhas para a fabricação de biscoitos eram testemunhos do rosto imperial tão importantes quanto uma estátua equestre no fórum -e muito mais comuns.

É de se imaginar que alguma forma de controle do poder central ajudasse a padronizar a imagem de cada imperador (com exceção, talvez, dos rostos nas forminhas de biscoito).

Um dos indícios mais interessantes disso, conforme aponta a historiadora britânica, é o fato de que os membros da primeira dinastia imperial, a júlio-claudiana (grosso modo, os parentes de sangue ou adotivos de Augusto, sobrinho-neto de Júlio César), não são muito fáceis de diferenciar, em especial no caso dos primeiros césares.

Augusto, brinca ela, estabelece como padrão uma espécie de "retrato de Dorian Gray" às avessas. Enquanto o Dorian Gray criado pelo escritor irlandês Oscar Wilde permanece perpetuamente jovem enquanto seu retrato envelhece, "Augusto, até sua morte em 14 d.C., beirando os 80 anos, foi retratado como um rapaz", escreve Beard.

É por isso que, muitas vezes, fica difícil distinguir o fundador da dinastia de seu enteado, filho adotivo, genro e sucessor, Tibério, ou do sucessor deste, Calígula (bisneto de Augusto). Na forma de mármore, todos têm uma beleza clássica genérica, emprestada dos escultores gregos.

Nero, também descendente de Augusto, sai um pouco desse script, talvez em parte pela sensibilidade "transgressora" do jovem imperador (embora gostasse de chocar a elite romana com sua mania de se apresentar como cantor, ator e até atleta olímpico, tudo indica que ele não ficou tocando lira enquanto Roma pegava fogo).

Não que seja exatamente fácil identificar com certeza as imagens de cada imperador, seja na hora de dizer quem é quem, seja na hora de saber se determinado busto data do período romano ou é um pastiche do Renascimento ou do século 18.

Além da crônica falta de letreiros, Beard lembra que, durante muito tempo, os antiquários ou artistas que recuperavam estátuas romanas consideravam completamente aceitável o uso de ácidos, polimentos ou outras técnicas agressivas que podiam descaracterizar o personagem original.

Isso para não falar de uma estátua em que a cabeça do magnata italiano Alexandre Farnésio foi acoplada a um corpo de mármore antigo que talvez, anteriormente, retratasse Júlio César.

A narrativa de Beard acompanha ainda como pintores e escultores dos séculos 18 e 19 finalmente abandonaram a convenção de retratar governantes ou militares de sua época com trajes de imperadores romanos (um dos últimos a receber essa honra hoje duvidosa foi o primeiro presidente dos Estados Unidos, George Washington).

Ao que tudo indica, o mundo moderno se tornou incapaz de conciliar imagens de um suposto poder absoluto benevolente com seu apreço crescente por valores democráticos. Nisso, estamos mais próximos dos romanos anteriores aos césares, que fundavam seu regime republicano na aversão a qualquer tipo de monarca.

DOZE CÉSARES: IMAGENS DE PODER DO MUNDO ANTIGO AO MODERNO

Avaliação Muito bom

Preço R$ 119,90 (464 págs.); R$ 69,90 (ebook)

Autor Mary Beard

Editora Todavia

Tradutora Stephanie Fernandes