Flip tem mesa que resgata Maria Firmina do racismo e do apagamento da história

Por PATRÍCIA CAMPOS MELLO

PARATY, RJ (FOLHAPRESS0 - Muito pouca gente sabe quem foi a primeira escritora afrobrasileira a lançar um romance no Brasil, em 1859. Não existe nenhuma foto de Maria Firmina dos Reis, uma professora primária negra do Maranhão que escreveu romances, contos e poemas no século 19.

Por muito tempo, ela foi descrita como branca, e sua obra só começou a ser estudada nos anos 1970, mais de cem anos após a publicação de "Úrsula", seu primeiro livro.

A Flip de 2022 começa com a missão árdua de resgatar a memória e a importância da maranhense Maria Firmina, homenageada do ano, e tirar do esquecimento inúmeras outras autoras negras que a história apagou.

"A história esquece sistematicamente as populações negras e as pessoas que não fazem parte do poder; há muitas lacunas e silenciamentos", disse a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, professora titular no Departamento de Antropologia da Universidade São Paulo, na mesa Minha Liberdade, que debateu a importância de Maria Firmina e seu apagamento da historiografia brasileira, "muito masculina, europeia e sudestina".

Por isso a importância de "trazer os nomes e reconstituir a história de autoras negras como Firmina", disse a outra debatedora, Luciana Diogo, uma estudiosa da obra da autora que faz doutorado em literatura brasileira na USP e edita a revista Firminas - Pensamento, Estética e Escrita.

Diogo substituiu Eduardo de Assis Duarte, professor de literatura comparada da Universidade Federal de Minas Gerais, que está com Covid.

"Não chegou até nós nenhum retratado de Firmina, mas ela foi representada como branca por muito tempo. Isso mostra como a sociedade brasileira tende a embranquecer figuras que se projetam; uma intelectual, professora, não pode ser tâo negra assim", disse Diogo.

"Precisamos pensar como Maria Firmina foi importante para que hoje uma mulher negra como eu esteja falando na Flip por sua intelectualidade."

Diogo, que é professora de sociologia, apontou para o esforço de Maria Firmina, que teve pouco acesso à educação por ser mulher e negra, e mesmo assim fundou uma escola primária mista no Maranhão.

Schwarcz e Diogo debateram todo o aspecto pioneiro da vida e obra da autora. Ela escreveu um conto abolicionista muitos anos antes da abolição. Incluiu em seu romance "Úrsula" uma discussão sobre o patriarcado e a condição das mulheres, além de alçar personagens escravizados ao protagonismo -sabendo que estava escrevendo para uma elite letrada.

Também lembraram como a família de Firmina, cuja mãe era branca e o pai negro, ofereceu que ela fosse carregada por escravizados em um palanquim para celebrar que havia ganhado uma vaga como professora. Ela recusou, dizendo que "negro não é animal para se ir montando nele".

A mesa, moderada por Eneida Leal Cunha, professora associada de literatura na PUC do Rio de Janeiro, focou na necessidade de ampliar o cânone literário para incluir autores negros. Mas, como o resto da programação, não se furtou de abordar as raízes do racismo no país e a situação política atual.

Lilia apontou para o fato de a plateia da tenda principal da Flip ser majoritariamente branca, e o legado da escravidão em um país onde a população negra é a maioria, com mais de 56%, "mas uma maioria minorizada em todos os espaços de representação".

Ela lembrou que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão, em 1888, e que só recentemente, em 2013, foi provada a PEC das empregadas, que garantiu direitos trabalhistas. "Só dois deputados votaram contra a PEC das empregadas em 2013. Um deles se arrependeu. O outro foi Jair Bolsonaro", disse Schwarcz, que foi aplaudida pela plateia.

As duas autoras encerraram discutindo a democracia, este "regime maravilhoso que está incompleto".

"A grande utopia em 2023 é construir um país mais inclusivo, mais plural e mais democrático", disse Schwarcz. "Um dos gatilhos mais poderosos para mudar a exclusão é a educação, como sabia Maria Firmina."