Na Flip, Teresa Cárdenas diz que Cuba luta com racismo mesmo depois da revolução

Por FERNANDA MENA

PARATY, RJ (FOLHAPRESS) - Foi com o samba "Luz do Repente", de Jovelina Pérola Negra, que a pesquisadora Ludmilla Lis abriu a primeira mesa do último dia da Flip de 2022. Com o público em pé, ela puxou um coro do refrão "Deixa comigo/ Eu seguro o pagode e não deixo cair/ É, é/ Sem vacilar/ É, é/ Sem me exibir/ É, é/ Só vim mostrar/ É, é/ O que aprendi".

Depois de ensaiarem uma dança, a escritora cubana Teresa Cárdenas e a poeta pernambucana Cida Pedrosa se sentaram, para falar sobre o feminino, ancestralidade e racismo numa das mesas mais emocionantes da programação.

"A Flip teve essa magnífica ideia de nos fazer visíveis", disse Cárdenas. "Demorou, mas aconteceu. Estamos aqui. É um tempo de esperança."

Voz potente da literatura infanto-juvenil e da escrita sobre a diáspora africana, Cárdenas alcançou reconhecimento internacional e prêmios com livros como "Cartas para Minha mãe", em que uma menina negra órfã vai viver com a tia e prima, onde é vítima de racismo, mas se fortalece na escrita de cartas para sua mãe morta.

A autora também é atriz, bailarina, roteirista e ativista, e está lançando "Awon Baba" (Pallas), titulado pela palavra iorubá para ancestrais, que traz 12 relatos biográficos.

"A escrita é um ato político e também espiritual. Escrevemos e não sabemos de onde vêm essas histórias. E elas vêm de longe, buscando portadores e tradutores para chegar até nós", disse Cárdenas, que leu um trecho do livro em que relata a história de um senhor de pessoas escravizadas espanhol, em Cuba, que vendeu os próprios filhos, fruto de abusos das mulheres negras sob seu domínio, e "morreu tranquilo".

"Essas são as raízes da identidade nacional em Cuba. De um lado, colonizadores espanhóis ferozes e assassinos, de outro, os africanos da costa Ocidental, que sobreviveram como puderam depois de serem trazidos em viagens horrorosas nas quais lhes foi tirado o nome e as religiões, mas não a alma, que eles legaram para nós", disse a cubana.

"Somos descendentes de sobreviventes, de gente que resistiu a tudo, e estamos aqui graças à resistência deles", avaliou Cárdenas, cujo trabalho trata de criar mundos em que coubessem descendentes como ela.

Pedrosa, duas vezes vencedora do prêmio Jabuti, leu trechos do seu livro "Estesia" (Cepe Editora), em que inaugura sua produção de haikai. A poetisa falou sobre a oralidade na sua formação literária e o fato de ela pensar em sons.

"Nasci no sertão e a literatura me veio pelo cordel, pela embolada, pelo homem da cobra que vendia coisas na rua e cantava. Não consigo separar a minha literatura da fala. Tanto que quando escrevo eu leio em voz alta: se a palavra não couber no meu ouvido, eu corto a palavra sem medo de ser feliz", contou.

Cárdenas falou que sua literatura está cheia de África e da literatura oral de contos, cantos, bailes e histórias. A autora leu um poema em que se descreve seu corpo e sua pela "cor da terra mais profunda e mais fértil". "África nasceu de mim/ Sou Eva/ Sou Negra/ Sou", concluiu ela, que, muito emocionada, recebeu um afago da mediadora.

A escritora lembrou que Brasil e Cuba foram os últimos países das Américas a dar liberdade aos escravizados.

"O racismo ainda é uma luta em Cuba, mesmo com um processo revolucionário de igualitarismo. Ainda estamos separados e ainda há muito o que fazer", disse. "Ainda que haja uma política de governo para lutar contra essas coisas, eu sinto que não se deixa que o povo preto se una o suficiente. É muito difícil e doloroso que, 130 anos depois, ainda estejamos sofrendo as consequências da escravidão."

A cubana leu um trecho de seu livro em que um feitor coloca a bota no peito de um homem escravizado e citou a atualidade da cena. "Há botas nos nossos peitos. É uma luta dura, de resistência, e não podemos nos cansar."

Cárdenas mostrou então um videoclipe de um grupo de rappers cubanos, do qual ela participa, cuja música conta a história de cubanos negros que não são admitidos em restaurantes para dar lugar aos estrangeiros.

"Entendo que o embargo cria uma necessidade financeira, mas os cubanos negros querem estar presentes e exigir respeito", disse, relatando a ascensão de uma afroestética cubana. "Há uma batalha em Cuba pela estética de origem africana. Uma conquista que estamos fazendo e que agora se espalha pela música, literatura, roupas e cabelo num movimento muito forte."