Novo 'Matilda' foge dos anos 1990 com músicas e evita cancelamento de Roald Dahl
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Esqueça "Little Bitty Pretty One", canção dos anos 1950 que garantiu a "Matilda" uma de suas cenas mais icônicas, quando a garotinha descobre seus poderes telecinéticos e se põe a dançar junto com a mobília de casa. Na nova versão para a história que chega agora à Netflix, a faixa não está presente, embora não faltem momentos musicais ainda mais grandiosos.
A nova adaptação do livro "Matilda", de Roald Dahl, é, afinal, um musical importado da Broadway e da West End londrina, onde a versão teatral fez sucesso arrebatador -foram cinco prêmios Tony e sete Olivier, honrarias máximas dos palcos americanos e britânicos.
Parecia questão de tempo, no momento atual de simbiose entre cinema e teatro e de saudosismo nas telas, até que "Matilda" reencarnasse. Os fãs do longa estrelado por Mara Wilson em 1996, no entanto, não devem esperar uma imitação. As diferenças entre um e outro vão muito além de "Little Bitty Pretty One".
Aspectos principais da trama permaneceram intactos e detalhes icônicos também, das divertidas travessuras da garotinha às excêntricas punições de seus pais e diretora. Mas o tom do filme é completamente diferente -mais inocente, mais ambicioso e até mais britânico.
"Eu não conhecia muito bem o filme quando fizemos a peça, mas é claro que agora, com a adaptação, nós pensamos mais nisso. Mas este filme não é uma tentativa de substituir o anterior, até porque aquela era uma versão americanizada. Fora que quando se adiciona músicas e dança, tudo muda", explica o roteirista Dennis Kelly.
Ele e o diretor Matthew Warchus, também indiferente ao longa de 1996, comparam sua versão para "Matilda" à relação entre os musicais vencedores do Oscar "Oliver!" e "Amor, Sublime Amor" com suas inspirações, outros chamarizes das bibliotecas britânicas, "Oliver Twist", de Dickens, e "Romeu e Julieta", de Shakespeare.
"Matilda: O Musical" acompanha a personagem do título, uma garota ignorada pelos pais que encontra refúgio nos livros. Quando começa a frequentar a escola, sua inteligência acima da média chama a atenção da doce professora Honey e da pavorosa diretora Trunchbull.
Armada com seu cérebro, tão desenvolvido que lhe dá o poder de controlar objetos com a mente, a protagonista comanda uma rebelião contra os métodos de ensino -ou de tortura- da vilã, que incluem arremessar meninas de tranças pelo ar, obrigar gulosos a comerem bolos inteiros e prender criancinhas em damas de ferro.
Há muita liberdade criativa nos dois "Matildas", mas a essência continua nas páginas escritas por Dahl, um dos maiores autores da literatura infantil. Uma olhada em seu currículo traz um senso de familiaridade para muita gente, que pode nunca ter lido seus livros, mas certamente já viu adaptações como "O Fantástico Sr. Raposo", "James e o Pêssego Gigante", "Convenção das Bruxas" e, claro, "A Fantástica Fábrica de Chocolate". É um "baú do tesouro", como bem traduz Alisha Weir, incumbida de dar vida à nova Matilda.
O longa que estreia agora é o primeiro fruto de uma compra que estremeceu o mercado há quatro anos, quando a Netflix desembolsou algo em torno de US$ 1 bilhão, cerca de R$ 5,2 bilhões, segundo especialistas da indústria, para ter os direitos autorais sobre várias histórias do autor britânico.
Mais recentemente, a relação do streaming com Dahl ficou ainda mais sólida, com o arremate da companhia que administra seu espólio e de seu catálogo na íntegra. Willy Wonka vai gerar uma série animada comandada por Taika Waititi e outras adaptações devem surgir em breve numa espécie de universo Roald Dahl, que abrangerá filmes, séries, jogos, peças, livros e todo tipo de produto.
Um passo arriscado, não só pela cifra envolvida, mas também porque o autor é um dos nomes que foram atingidos, nos últimos anos, pela onda de cancelamento que também fez vítimas nos escritores infantojuvenis e compatriotas J.K. Rowling e Rudyard Kipling.
Seu caso é delicado, já que o autor expressou em vida pontos de vista abertamente antissemitas. É um assunto especialmente espinhoso em tempos de Kanye West e alta nos ataques a judeus.
Ela própria escritora -além do Oscar de melhor atriz por "Retorno a Howards End", venceu também um de roteiro adaptado por "Razão e Sensibilidade"-, Emma Thompson vê com cuidado a polêmica. Por um lado, ela sabe, é impossível cancelar toda a obra de um autor tão fundamental. Por outro, condena o preconceito inquestionável que pautou a vida pessoal da Dahl.
"Você precisa separar o autor da arte. Caso contrário, honestamente, quem vai escapar?", questiona a nova intérprete da temível Trunchbull, que aparece em cena coberta de próteses e maquiagem, que a tornaram quase irreconhecível.
"Quem você vai encontrar que tenha escrito coisas brilhantes e também tenha sido um ser humano brilhante, alguém que incorpora todos os nossos ideais democráticos e defende os direitos humanos? Você não vai. Então precisamos ver o que sua arte sugere. No caso, sim, Dahl era uma pessoa perturbada, mas não vemos preconceito em seus livros."
O diretor Matthew Warchus faz coro, lembrando que o coração de "Matilda" -esta nova, a dos palcos, a dos anos 1990 ou a do livro- é justamente seu discurso de tolerância e gentileza.
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MATILDA: O MUSICAL
Quando: Estreia neste domingo (25), na Netflix
Classificação: 10 anos
Elenco: Emma Thompson, Alisha Weir e Lashana Lynch
Produção: Reino Unido, EUA, 2022
Direção: Matthew Warchus