Quem é Quito Ribeiro, nome gravado por Gil e Gal e que estreia como romancista

Por LEONARDO LICHOTE

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - Na rua, o garoto negro pede uma Coca-Cola ao rapaz negro que toma uma Coca-Cola. Frente à negativa, o menino rebate: "Por que não, playboy?". O vocativo desperta uma reflexão instantânea no sujeito que o recebe. Afinal, ele se achava mais parecido com seu interlocutor do que com a ideia que tinha de playboy.

Passam pela cabeça dele coisas como o tratamento supostamente carinhoso de "neguinho" que recebia desde criança, distinguindo-o no ambiente de classe média no qual cresceu; a adolescência na qual estreitou laços com os que o viam como "neguinho", consequentemente adotando seus padrões "brancos" de comportamento.

Vem ainda a consciência de sua negritude a partir da leitura de "Raízes", sobre a vida de um africano escravizado, e o pensamento de que, comparado ao garoto pedinte, um "preto legítimo", ele era "meio Parmalat".

A cena --presente no romance "No Canto dos Ladinos", estreia literária de Quito Ribeiro, publicado pela editora Todavia-- sintetiza muito do tom do livro.

A trama explora exatamente personagens que estão nesse lugar, o meio-caminho do negro de classe média brasileiro. Figuras crivadas das contradições de quem não é branco o suficiente para ser tido como uma presença natural nos bons restaurantes e lojas caras e, por outro lado, não é negro o suficiente para ser confrontado diariamente com o peso do racismo, como um morador da periferia.

"Esse momento do playboy, esse confrontamento com a própria identidade, a própria condição de negro, está espalhado pelo livro, em escalas diferentes, em outros personagens", diz Quito, que lança o livro em São Paulo no dia 1º de março, às 19h, na Livraria Drummond, no Conjunto Nacional.

Ele exemplifica, elencando os personagens. "Cristiane [escritora de sucesso que tem como tema central a figura do negro que ascende socialmente] está melada de dendê nessas contradições. Sua irmã Mariana [negra de pele clara, que vive num condomínio de luxo em Salvador e é pastora] intui isso tudo mas não sabe nomear. E Érico, marido de Mariana, foge dessa consciência."

A expressão "ladino" do título, Quito explica, era usada para se referir aos escravizados africanos que aprendiam português e, assim, passavam a ocupar um espaço de mediação entre o senhor branco e o africano que falava apenas sua língua-mãe e eram chamados de boçais. O autor faz um paralelo entre esse personagem do Brasil escravocrata e os que povoam seu livro.

"Todos os personagens do livro vivem essa contradição", aponta Quito. "Porque aprender outra língua é também um processo de afastamento do seu essencial, de sua origem. O livro tem essa coisa com o domínio de linguagens, como o cara que entende de linguagem de computador e a psicanalista."

Mas se afastar da origem, defende Quito, não é necessariamente um projeto individualista. "Quem faz esse caminho é o capitão-do-mato, um ladino que escolhe avançar sozinho. Mas a negritude implica em você avançar e trazer consigo seu bonde, fazer os seus ocuparem aquele espaço que não costumam ocupar."

Na visão de Quito, interessa à sociedade racista que o discurso do ladino seja lido como um discurso embranquecido, mesmo quando isso não se reflete na realidade. "Os personagens de Jorge Ben são pretos mesmo quando não são identificados assim. Mas não se pensa nisso. As mulheres que Djavan canta são do universo ficcional negro."

Compositor popular e montador de cinema, o próprio Quito, negro soteropolitano, encarna esse arquétipo do ladino. Filho de funcionários públicos, cresceu num ambiente que permitiu que seguisse essa trilha. "Pude me tornar um ladino, e esse tema passa por toda a minha obra."

Uma obra que se iniciou numa parceria com Lucas Santtana, "Domingo no Candeal", sua primeira composição a ser gravada --por Daniela Mercury, em 1994. Já ali se manifestava o que ele chama de olhar ladino. Um trecho: "Look de lupa e timbau/ Tênis Reebok e relógio Shock".

"Um Passo à Frente", parceria com Moreno Veloso gravada por Gal Costa, traz outros personagens filhos do mesmo olhar, mas agora no ambiente do samba de roda: "Ela sorri com a barriga/ Ele corteja a preferida".

"O movimento negro me criou enquanto pessoa de rua. Sou filho do Carnaval de rua de Salvador", conta Quito. "O meu encanto pelo mundo se deu ali. Na minha adolescência, vi o Carnaval enegrecendo. Vi 'Faraó' surgir, ouvi os meninos cantando 'Eu Sou Negão' pelas ruas, aquilo foi muito forte para mim. Fui jogado na escrita a partir disso."

Suas canções ganharam também a voz de cantores como Roberta Sá e Caetano Veloso. Seu maior sucesso, porém, veio de uma encomenda para um grupo fictício, as Empreguetes, estrelas da novela "Cheias de Charme". "Era um momento em que estava muito em voga a chamada ascensão da classe C, e as Empreguetes eram uma maneira de retratar isso", lembra Quito.

Antes de "No Canto dos Ladinos", Quito já havia tido uma experiência indireta com a literatura. Ele é personagem de "Também os Brancos Sabem Dançar", do angolano Kalaf Epalanga. Quito o conheceu editando em Lisboa um documentário sobre kuduro --Kalaf ajudou a expandir os limites do gênero como integrante da banda portuguesa Buraka Som Sistema.

"A gente ficou se encontrando muito em Lisboa, trocamos muitas ideias. Conheci uma Lisboa preta a partir dele", diz Quito, que aparece no livro com seu nome real, como alguém que em suas falas traduz a música e a cultura brasileira com um olhar sagaz de ladino.

O conceito de ladino é o núcleo do título, e mesmo do enredo, do livro. Mas Quito chama a atenção para outro aspecto do nome. "Diáspora é espalhar, mas também é semear. A palavra 'canto' guarda também esse duplo sentido. De um lado, é o cantar, a oralidade. De outro, é o canto geográfico, onde você está e onde pode semear."

O escritor lembra uma canção sua, "Pesquisa", que conversa com essa ideia: "Em cada ponto um preto/ Em cada preto um canto/ Em cada canto um preto/ Em cada preto um santo/ Em cada santo um preto/ Em cada preto um conto".

NO CANTO DOS LADINOS

Quando: Evento de lançamento em 1º de março

Onde: na Livraria Drummond - av. Paulista, 2073, loja 153, São Paulo

Preço: R$ 54,90 (112 págs.);

Quanto: R$ 34,90 (ebook)

Autor Quito Ribeiro

Editora Todavia