Como série da Globo sobre empregada doméstica evita maniqueísmo
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - Com meio corpo para fora de um janelão da zona sul carioca, pendurada em uma escada bamba, a empregada doméstica Mayara, vivida por Luellem de Castro, sua frio enquanto se equilibra para limpar uma manchinha da parte externa do vidro.
A cena parece de um filme de terror -e é mesmo. Este é o mote de "Mancha", episódio que dá o pontapé na série da Globo "Histórias Impossíveis", prevista para ir ao ar nesta segunda-feira, logo depois do Big Brother Brasil, por volta das 23h55.
Dirigido por Everlane Moraes, o episódio engrossa o coro das produções brasileiras que abordam com lentes críticas o trabalho doméstico permeado pela questão racial, à la "Que Horas Ela Volta?". Desta vez, na teledramaturgia e com ares de thriller fantástico.
Mayara encarna a ascensão social do Brasil. As diretoras pintaram a protagonista como uma jovem "distante dos códigos da favela", diz Moraes. Ela usa o cabelo natural em um black power, não fala palavrões e não está envolvida com crime. Mayara está deixando o serviço para fazer faculdade.
Agora é Laura, não mais dona Laura, diz a patroa, que não resiste em sugerir que a jovem tente conciliar o trabalho com o curso. "Não sei o que vou fazer sem você", completa, encarnando a caricata mulher branca incapaz de se virar sozinha.
Vivida por Isabel Teixeira, ela não é como as outras patroas. A dondoca complexa se tornou mãe da bebê Manu "aos 45 do segundo tempo" e foi abandonada pelo marido.
A decoração do enorme apartamento de Laura entrega mais um pouco de sua consciência social vaga. As paredes em tons terrosos são confeitadas com fotos em preto e branco de crianças negras e máscaras africanas. Até a pequena Manu, promessa de uma geração melhor, tem uma bonequinha negra.
A figura da empregada na televisão brasileira não é novidade. Figurinha carimbada como alívio cômico e alvo pontual da vilania ou protagonista rara em casos como as Empreguetes de "Cheias de Charme", a profissão ganhou profundidade em "Mancha".
Não por mostrar a extensão da história de vida ou da rotina pessoal de Mayara, mas porque, depois de acontecimentos fantásticos, ela está longe de ser boazinha, e Laura, longe de ser uma vilã pura.
Inversões de papel e espelhamentos entram em cena em "Mancha", que bebeu visualmente até de "Persona" de Ingmar Bergman. É uma aposta de série de terror feminista, com forte crítica racial.
Segundo Jaqueline Souza, que assina a criação da série com Grace Passô e Renata Martins, o realismo não dá mais conta da própria realidade. "A experiência das pessoas pretas é tão absurda que precisa ser vista por um gênero à parte", diz. Para Passô, "o gênero [fantástico] ajuda a contornar essa realidade".
Elas dizem se inspirar em Jordan Peele, que levou a temática racial ao terror com "Corra", "Não! Não Olhe" e "Nós", e John Carpenter, um dos pioneiros do slasher com seu "Halloween", mas querem experimentar o terror a partir da perspectiva das mulheres negras brasileiras.
Até porque assunto não falta. "Para as empregadas domésticas, o cotidiano é um terror. Você nunca sabe que horas você vai sair, quando a patroa vai precisar de você", diz Moraes, a diretora do episódio.
Renata Martins diz que não é a profissão que agrega complexidade à protagonista Mayara. "Ouvi que as pessoas estão cansadas de ver histórias de empregadas. As pessoas não estão cansadas dessas histórias. Elas estão cansadas de ver estereótipos de empregadas", diz.
Para fugir dessa armadilha, as criadoras evitaram recair no maniqueísmo óbvio da empregada heroica versus a patroa má. "Essa lógica não nos interessa mais. Ela não diz mais nada", afirma a diretora artística Luísa Lima.
Moraes e Lima apostam que o episódio tem potencial educativo -algo que já estava no plano das autoras. "Não queríamos que o aspecto didático viesse sem complexidade dramatúrgica e estética", afirma Lima. Moraes diz que gostaria que patroas e empregadas assistissem juntas ao episódio. Desconforto servido à parte.