Ópera de Mozart no Municipal explora ambivalências do texto
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Será que elas saberiam desde o início quem são eles? Descobrem em algum outro momento? O que estamos dispostos a enxergar ou não?" As perguntas da diretora cênica Julianna Santos, formuladas em texto que integra o programa da ópera "Così Fan Tutte", de Mozart, ainda ecoam, após a estreia da montagem, que ocorreu na última sexta-feira (24), no Theatro Municipal de São Paulo.
A história pode ser resumida assim: soprano (Fiordiligi) e barítono (Guglielmo) formam um casal, assim como mezzo soprano (Dorabella) e tenor (Ferrando). Instigados pelo velho Don Affonso (baixo), com ajuda da criada Despina (soprano), os dois homens irão se disfarçar no melhor estilo das comédias shakespeareanas: cada qual será desafiado a seduzir a noiva do amigo.
Pode parecer pouco, mas não é. Estreada em 1790 em Viena, "Così fan tutte" ("Assim fazem todas") é a última parceria de Mozart com o libretista Lorenzo da Ponte, com quem o compositor, que morreria no ano seguinte aos 35 anos, havia feito anteriormente "As bodas de Fígaro", de 1786 e "Don Giovanni" de 1787.
Tal como a maior parte das relações amorosas de verdade, a história é temperada por ironias, ambivalências e elipses. Afetos revelam suas componentes: a piedade pode ser o primeiro estágio do amor, e uma tênue linha parece separar o ciúme passivo da positividade que promove aceitação e tolerância.
A montagem assinada por Julianna Santos trabalha com poucos elementos cênicos: formas geométricas precisas, o pareamento entre lilás e verde, e mesas e cadeiras, que desenvolvem a ideia da "Escola dos amantes", o subtítulo da obra. Um ótimo uso da luz, a cargo de Wagner Antônio, faz o restante.
Mozart compõe uma música incrivelmente variada, que pontua, contorna, aprofunda e refina ainda mais a trama. A orquestração é extremamente criativa, e os cantores solam sobre diferentes combinações instrumentais, com destaque para trompas e madeiras. Antes de tudo, a escrita vocal beira o extraordinário.
Para além das árias solo das personagens, é na combinação grupal que se dá o virtuosismo: o compositor desfila duetos, trios, quartetos, quintetos e sextetos de alta complexidade musical-teatral, e ainda usa pontualmente o coro para encher o teatro com a voz das multidões.
Na estreia, tudo começou um tanto frio, mas pouco a pouco ganhou brilho e luz. A Sinfônica Municipal, regida por Roberto Minczuk, foi ficando mais leve e ágil, e as vozes solistas começaram a mostrar suas qualidades.
Saulo Javan coloca sua voz poderosa a serviço de um Don Affonso muito divertido, que combina bem com a versátil Despina, de Chiara Santoro; Josi Santos dá autenticidade e profundidade psicológica à sua Dorabella, enquanto Michel de Souza dota Guglielmo de uma extraordinária veia cômica. Aníbal Mancini imprime delicadeza a Ferrando, e Laura Pisani ganhou o público já na primeira ária de Fiordiligi, "Come scoglio" ("Como um rochedo").
Antes que nos valores individuais, está na interação camerística dos cantores --o elenco entendido como grupo-- a força da montagem, e aqui há um detalhe sobre a acústica do Municipal que pode fazer toda a diferença. É incrível como a projeção da maior parte das vozes pode ser maximizada pelo espaçamento dos cantores no palco: bastam dois ou três passos adiante, na direção do público, para mudar (para melhor) o efeito sonoro e o equilíbrio com a orquestra.
A Sustenidos, organização social que gere o Municipal, foi recentemente colocada em xeque pelo Tribunal de Contas do Município. Mais uma vez, esse tipo de crise não parece afetar o profissionalismo dos corpos artísticos, e tampouco diz respeito à relação com o público, que lotou o teatro na estreia, como tem ocorrido, a despeito das mudanças de gestão administrativa ocorridas ao longo da última década. No mais, basta dar vida às melodias de Mozart.
COSÌ FAN TUTTE
Quando: Até 1/4; ter., qua. sex., sáb., 20h; dom, 17h
Onde: Theatro Municipal - pça. Ramos de Azevedo, s/n
Preço: R$ 12 a R$ 158
Classificação: 12 anos
Elenco: Laura Pisani, Josy Santos, Anibal Mancini, Michel de Souza, Saulo Javan, Chiara Santoro
Direção: Julianna Santos
Avaliação: Muito bom