'A Esposa de Tchaikovski' mostra mulher resiliente que sofre por amor

Por INÁCIO ARAUJO

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Kirill Serebrennikov não é um amigo do governo russo, que já o perseguiu por razões mais ou menos torpes. Mas não acredita que seu "A Esposa de Tchaikóvski" seja uma forma de desafiar esse governo justamente quando enfrenta uma guerra feroz contra a Ucrânia.

O fato é que "A Esposa de Tchaikóvski" foi filmado antes da guerra começar, mas sua ida ao Festival de Cannes do ano passado caiu como uma luva: afinal, a França tem sido uma aliada mais que fiel da Ucrânia, e cutucar o governo russo não terá desagradado a União Europeia inteira.

No centro do filme está a sexualidade do compositor. Mas teria ele sido homossexual, como se diz, como Ken Russell já cantou como todas as notas em seu "The Musid Lovers"? Bem, o ministro da Cultura russo já disse, há mais de dez anos, que não, Tchaikóvski não era gay. A opinião soa como um decreto, vinda de um servidor do governo Putin, hidrofobamente homofóbico: como admitir que tenha sido gay uma glória nacional como Tchaikóvski.

Mas é disso mesmo que se trata no filme de Serebrennikov, embora, como disse o diretor, não foi a opção sexual do compositor que o motivou, e sim o amor sem fim, amor que lhe dedicou Antonina Ivanova, papel de Alena Mikhailova, digna representante da escola russa de interpretação.

Talvez uma coisa vá com a outra. E não por acaso o filme começa com a cena do funeral do compositor sendo invadida por Antonina, e Tchaikóvski se levantando para dizer-lhe que, por favor, largue do seu pé (as palavras não foram essas, mas o sentido, sim).

É certo, porém, que a cegueira de Antonina em relação a seu amado tinha o tamanho de seu amor: infinitos ambos. Desde que o vê tocar, ela corre atrás. Não importa que ele viva cercado de rapazes. Ela não se importa. A mãe não cansa de adverti-la contra o perigo de casar com um homem que não conhece. Antonina reage indignada: ela o conhece muito bem. Só ela o conhece.

Tem razão Serebrennikov de dizer que o centro de tudo é esse amor obsessivo, que começa como drama romântico e termina como tragédia. Uma tragédia que a mulher cultivou ao longo de sua vida como destino inelutável e como uma paixão maior que sua própria vida.

De algum modo, o filme parte da submissão completa da personagem a uma ideia a uma postulação feminista: a ausência de lugar para a mulher na Rússia imperial determina boa parte desse destino. Boa parte da soturna parte final do filme girará em torno da insensata fidelidade de um amor que deixou de ter objeto.

Chegamos, enfim, ao principal de tudo isso: "A Esposa de Tchaikovski" sofre de certa solenidade. É cem vezes melhor que as plumas soltas de Ken Russell, parece mais fiel à sua cultura e, talvez, ao seu tempo, ao fim do século 19. Na segunda parte fica até difícil distinguir até que ponto o amor de Antonina Ivanova diz respeito ao homem ou ao gênio. As duas coisas podem ser inseparáveis, mas Tchaikovski passa a tratá-la, de certo ponto em diante, de maneira insuportável.

Ao diretor do filme interessa sobretudo o retrato de uma mulher resiliente, aquela que não cede em nada e por nada. Ele consegue, com um filme que se deixa ver agradavelmente, se beneficia de uma boa direção de atores e, mais ainda, da força da atriz. Serebrennikov tem, no mais, a dignidade de falar de Tchaikovski, ao mesmo tempo em que deixa a figura do compositor de gênio em segundo plano em relação à mulher; mesmo sua música não se impõe como motivo.

A ESPOSA DE TCHAIKOVSKI

Onde: Nos cinemas

Classificação: 16 anos.

Elenco: Alyona Mikhailova, Odin Lund Biron, Filipp Avdeev

Produção: Rússia, França, Suíça, 2022

Direção: Kirill Serebrennikov

Avaliação: Muito bom