Como o retorno do manto tupinambá ao Brasil debate a repatriação de relíquias

Por ALESSANDRA MONTERASTELLI

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Para que um manto seja tecido pelos indígenas tupinambás, o território precisa estar em calmaria. Com um fio de algodão selado por cera de abelha, que lhe confere resistência, penas de diferentes pássaros são costuradas juntas.

Algumas são colhidas pelas crianças que, curiosas, as procuram pelo chão da aldeia para entregá-las à Glicéria Tupinambá. Ela costura as vestes sagradas usando um fio único junto ao fuso, sem agulha. "O manto envolve várias pessoas e vários saberes", diz.

A última veste que fez contou com 3.500 penas e demorou quatro meses para ser tecida. Os novos mantos despertam um saber que estava adormecido pela distância entre os tupinambás e as vestes sagradas de seus ancestrais, todas alocadas na Europa.

Agora, com 1,2 metros de comprimento por 60 cm de largura, o manto tupinambá confeccionado no século 17 em penas de guará, pássaro de coloração vermelha que habita o litoral brasileiro, voltará ao Brasil.

Será recebido e guardado no Museu Nacional do Rio de Janeiro, ainda em reconstrução desde o incêndio que consumiu dois terços de sua coleção em 2018. A peça foi doada pelo Nationalmuseet, em Copenhague, onde estava desde 1689.

"Receber esse manto é uma enorme responsabilidade", diz Alexander Kellner, diretor do Museu Nacional. Ele assumiu o cargo apenas seis meses antes do fogo. "Eu precisei dar garantias aos curadores", disse, para receber a veste de 400 anos.

Entre os cuidados técnicos, está o modo de conservação e exposição, visto que a incidência da luz pode contribuir para o desbotamento das penas rubras. Junto deles, o acompanhamento simbólico e espiritual por parte dos indígenas foi colocada como prioridade.

A tecelagem de mantos era praticada há séculos e foi interrompida conforme o avanço da colonização e dominância sobre os tupinambás -primeiros indígenas a ter contato com os portugueses.

Glicéria viu um manto pela primeira vez em 2018, em visita ao Museu do Quai Branly, em Paris, que guarda uma das 11 vestes que estão na Europa.

"Eu não vejo o manto como objeto, mas como agente. Ele não traz só a história de seu deslocamento, mas as vivências ritualísticas junto ao seu povo. São memórias e não uma coisa simples e estática", diz.

Em 2021, Rodrigo Azeredo, embaixador brasileiro na Dinamarca, visitou o Nationalmuseet e ficou encantado. Ele visitava a sala dedicada à missão holandesa no Brasil, liderada por Maurício de Nassau, quando se deparou com as penas vermelhas.

O embaixador decidiu então concentrar seus esforços para trazer o manto ao Brasil. Entrou em contato com Kellner, que enviou uma carta em nome do Museu Nacional à Dinamarca. O cacique Babau, liderança tupinambá e Glicéria fizeram o mesmo.

Em 2021, Célia foi enviada ao Nationalmuseet. "Pela escuta do manto, soube que ele estava esperando um parente de linhagem sanguínea para ser contatado. Houve uma consulta aos encantados e ele disse que havia completado sua missão e que queria voltar", diz. Os tupinambás concordaram que o manto fosse guardado no Museu Nacional.

Nos últimos anos, outros objetos retornaram aos seus países de origem, esquentando o debate sobre a devolução de peças arqueológicas e de arte retiradas de seu território durante períodos de colonização.

Crânios maori foram devolvidos à Nova Zelândia pelo próprio Nationalmuseet, enquanto um relatório recente elaborado pela historiadora francesa Bénédicte Savoy e o economista senegalês Felwine Sarr mostra que a maior parte do patrimônio africano se encontra na Europa.

No caso do Brasil, o fóssil do dinossauro Ubirajara, encontrado no Ceará, foi repatriado após passar três décadas na Alemanha. Recentemente, uma coleção de 611 peças etnográficas indígenas também foi devolvida pela França ao Museu do Índio.

Outros objetos, como cerâmicas marajoara, produzidas entre o ano 400 e 1400 no Pará e que hoje estão em instituições dos Estados Unidos e Europa, não têm data para voltar.

"Na França e na Inglaterra, as coleções são nacionais, portanto não pertencem aos museus, que são gestores. No caso francês, para cada item devolvido é necessária a adoção de uma lei particular", diz Leandro Varison, pesquisador científico do Museu Quai Branly.

No caso do manto tupinambá, após a aprovação do Nationalmuseet, a doação precisou ser aprovada pelo Ministério da Cultura da Dinamarca. "Essa questão de repatriação é muito delicada. Nós decidimos chamar de doação, para não gerar polêmica", disse Azeredo.

Segundo o embaixador, a motivação do Nationalmuseet foi em parte ajudar a reconstruir o Museu Nacional do Rio, como parte de uma cooperação internacional. Por outro, compreenderam a importância religiosa do manto para os tupinambás.

A vestimenta sagrada tinha vindo ao Brasil no ano 2000, para a exposição "Brasil + 500 Mostra do Redescobrimento", em São Paulo, um ano antes de a Funai reconhecer que os tupinambás não estavam extintos.

Na época, Nivalda Amaral de Jesus, que pedia o reconhecimento de sua comunidade como tupinambá para o governo, foi visitar o manto. "Somos tupinambás. Queremos o manto de volta", disse à reportagem.

Para João Pacheco, curador do Museu Nacional, é importante não simplificar a questão quando se fala em repatriação. "É preciso distinguir coleções raras. O manto é totalmente singular, até porque o guará está em risco de extinção. A ausência do manto é uma marca importante para o enfraquecimento dos indígenas", afirma.

"As políticas da memória no Brasil são historicamente muito frágeis, justamente por ser um país colonial de matriz extrativista", disse Paulo Miyada, curador do Instituto Tomie Ohtake e adjunto do Centre Pompidou, à reportagem.

A Lei do Patrimônio Arqueológico no país é de 1961. Seu atraso impediu a preservação de diversos patrimônios, entre eles os sambaquis, estruturas formadas por ocupações pré-coloniais no litoral brasileiro.

Segundo Miyada, pesquisas de patrimônio cultural no Brasil raramente foram impulsionadas por políticas públicas. Mário Pedrosa, crítico de arte brasileiro, pensou um sistema de museus fortalecido em rede, para que pudessem compensar os pontos frágeis entre si e trabalhar em conjunto.

"Isso deveria ser aplicado ao Museu Nacional, para que sua administração não esteja sozinha na solução de desafios materiais e conceituais", afirma.

Para Glicéria, o retorno do manto tinha que ser agora, no momento de debate político em torno do marco temporal, que pretende definir territórios indígenas apenas de acordo com sua ocupação no momento da Constituição de 1988.

Kellner concorda. "Se estivesse aqui antes, teria sido queimado", diz. O diretor afirma que vem percebendo boa vontade do novo governo para reconstruir o Museu, fato que constatou após uma visita de Lula e do ministro da Educação, Camilo Santana, somada a uma promessa de nova linha orçamentária destinada à instituição, mantida pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Miyada vê com bons olhos o interesse do governo e da sociedade em geral em relação não só ao Museu, mas também ao manto tupinambá. "A política da memória não diz respeito só ao passado longínquo, mas inclui a construção do presente e a capacidade de projetar para o futuro", diz.