Como êxodo na música gospel escancara os conflitos de igrejas evangélicas
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Hoje meu sorriso é verdadeiro", escreveu numa rede social Quesia Black, cantora que fechou a cara para a indústria musical evangélica no Brasil. "Não faço parte do mercado gospel e não quero ser incluída neste formato."
A fé de Quesia continua de pé. O que tombou foi sua relação com esse nicho fonográfico. Antes dela vieram outros desgostosos com o meio ?gente graúda como Priscilla Alcantara, Jessé Aguiar e Jotta A.
Os três artistas tinham quilometragem nas igrejas. Como Quesia, Priscilla e Jessé abandonaram o segmento gospel, mas não a fé evangélica. Já Jotta A disse no ano passado que não carrega mais o rótulo cristão, mas nutre "respeito por deixar que a crença me leve para aonde ela tem que me levar".
O motivo para se afastarem do mercado passa pela onda ultraconservadora que nos últimos anos encharcou os templos.
Com suporte da Central Gospel Music, gravadora do pastor Silas Malafaia, Jotta A chegou a ser indicada ao Grammy Latino. Mas a hipocrisia entre os pares cristãos nunca lhe passou batida, diz a cantora e compositora. "Já presenciei um líder religioso altamente reconhecido usando cocaína. Vi muitos pastores terem amantes, e também fiz essas coisas. O lema era faça, mas faça meio escondido."
Retirou-se do gospel após se entender como mulher transgênero e ser massacrada por antigos convivas, inclusive os que no púlpito diziam uma coisa, mas fora dele agiam como quem acusavam de pecar. Ainda na identidade masculina, teve relações homoafetivas com uma penca deles.
Assumir-se LGBTQIA+ também levou Jessé Aguiar a debandar do mercado pelo qual conseguiu um feito ?ter uma composição entre as dez canções brasileiras mais gravadas de todos os tempos. É o único artista vivo numa lista que inclui Tom Jobim e Cartola.
Em fevereiro, ele anunciou sua saída da Todah Music, gravadora de Davi Sacer e outros nomes fortes do gênero. A "fé ímpar" continuava intacta. Mas já deu de gospel. "Não faço mais parte desse cenário", havia dito.
Em junho, uma nova declaração trovejou entre evangélicos. "Tenho 21 anos e sou gay", disse o frequentador de uma Assembleia de Deus em Goiás. "Isso para alguns vai ser um choque. Outros vão até brincar, porque choca um total de zero pessoas."
No mesmo dia, citou a tentativa de suicídio vinda a reboque de muita depressão e ansiedade. Anos de pregação o fizeram se enxergar como uma abominação aos olhos de Deus, por gostar de meninos.
O ponto de inflexão, para Priscilla, foi maio de 2020. Isolada naquele início de pandemia, soube pelo noticiário que a polícia assassinara o americano George Floyd e o brasileiro João Pedro.
Compôs então uma letra citando as vítimas de violência policial e questionando por que tanto silêncio entre cristãos ante injustiças como essas.
Diz "Você Aprendeu a Amar?", que lançou em 2022 com Emicida: "A incoerência da fé/ que diz 'Deus é amor'/ e esconde esse Deus/ em nome do temor".
Um ano antes, fantasiada de unicórnio, Priscilla venceu o "The Masked Singer Brasil". A performance de hits não religiosos como "I Will Always Love You" no reality da Globo prenunciava seu distanciamento da cena evangélica.
A polarização política pesou para o divórcio com o mercado onde iniciou sua carreira. Na pré-campanha eleitoral de 2022, a artista avisou que deixaria de cantar "Liberdade", sucesso da fase gospel, porque Jair Bolsonaro havia usado a música numa publicação. "Gente, o que eu fiz de tão errado para merecer isso?"
Os conflitos nas igrejas escalaram nos últimos anos, coincidindo com "um maior envolvimento de lideranças na política e uma maior visibilidade no espaço público por meio das redes sociais", diz a antropóloga Olívia Bandeira, autora do livro "Música Gospel - Disputas e Negociações em Torno da Identidade Evangélica no Brasil".
O endosso maciço no meio a Bolsonaro em 2018 e 2022 casou com o projeto de construção de uma nação cristã, diz. Na garupa desse movimento veio "uma contraofensiva moralizante que, acionando sentimentos de ameaça aos valores do cristianismo, reage a direitos conquistados por mulheres e pessoas LGBTQIA+".
A guerra cultural levou muitos a ver artistas que se desviassem um milímetro dessa identidade conservadora como "falso cristão", segundo Bandeira. Daí parcela deles preferir sair da indústria gospel.
Mas há alguma resistência interna à direita cristã. Episódio paradigmático foi o lançamento de "Messias" no ano passado, que reuniu músicos evangélicos consagrados como Leonardo Gonçalves e Kleber Lucas. A música fala em expulsar "mercadores do templo" e defende a religião que cuida "do gay, do preto, da mulher".
Kleber, pastor batista com lastro no cancioneiro gospel, atribui o êxodo de artistas, ele próprio incluso, "a um descontentamento, no sentido de buscar uma emancipação da música do controle de um fundamentalismo religioso".
É dele "Deus Cuida de Mim", hino evangélico muito popular nas igrejas e regravado por ele em parceria com Caetano Veloso. Sua postura progressista, somada ao apoio a Lula na eleição, o transformaram num pária para boa parte do segmento. Nada do que ele se arrependa. "A arte é livre. Não pode estar refém a nenhum tipo de sistema."
Há ainda subgêneros, lembra Bandeira, que transitam melhor entre o gospel e o mercado não religioso. Pregador Luo, que já foi atração da Marcha para Jesus, é um bom exemplo.
Participam de seus álbuns tanto gente de fora dos templos, como Racionais MC?s e Emicida, quanto de dentro deles, como Cassiane. "Ele busca não se caracterizar como artista gospel, mas como um rapper que é cristão e que tematiza sua fé ao lado de outros temas centrais no mundo do rap, da periferia ao racismo."
Dilemas de fé também explicam em parte por que alguns artistas deixam o meio gospel. Quesia, por exemplo, decidiu não seguir no ramo após lançar "A Vitória Chegou".
Seu incômodo, conta a fiel da Igreja Lagoinha Batista da Lagoinha de Alphaville, uma das centenas de templos sob jugo do pastor André Valadão, tem a ver com a incoerência entre teoria e prática que observou entre irmãos de fé.
"Vi pessoas fazerem letra de louvor para o mercado gospel e apagarem o refrão, porque a frase não vende. Resumo: as músicas não são mais inspiradas no Espírito Santo de Deus, mas no mercado que decide o que pode vender ou não. Isso foi me assustando."
Ela optou por deixar essa indústria para trás e hoje não descarta trilhar rota parecida às de Priscilla, Jessé e Jotta A ?cantar músicas seculares, entendidas por evangélicos como despidas de religiosidade.
"Enquanto eu sentir [vontade] de cantar músicas que engrandecem a Deus, vou cantar. Mas se quiser cantar outras que falem de algo legal, canto também. Não vou me prender a essa loucura de gospel, não."