Ex-chefões do tráfico superam rivalidade e trabalham juntos em produtora de séries da Globo

Por JÚLIO BOLL

Celso Rodrigues, Nei da Conceição e Amabilio Gomes

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Dos reencontros que a vida possibilita, talvez o mais improvável de se imaginar é o de João Paulo Garcia dos Santos, Amabílio Gomes Filho e Nei da Conceição Cruz, ex-líderes do tráfico do Complexo da Maré, do Rio de Janeiro, que eram rivais e agora trabalham juntos em projetos da AfroReggae Audiovisual.

A produtora, braço direito da ONG AfroReggae, que tem 30 anos de atuação em favelas cariocas, assina o desenvolvimento, produção e edição de grandes sucessos do Globoplay, como "Arcanjo Renegado" e "A Divisão".

Após cumprirem suas penas, os três egressos do sistema penal viram-se em um mundo de falta de oportunidades e acabaram abraçados por José Júnior, presidente da produtora. Muitas das histórias que o coordenador geral ouviu estão nas tramas das séries, aprovadas pelos ex-líderes de facções, que se tornaram produtores, motoristas e consultores de atores e texto das produções.

"Sabe a 'Porta da Esperança', lá do Silvio Santos? É isso. O Afroreggae é a Porta da Esperança dessas pessoas", afirma Junior, orgulhoso. "Se a sociedade não permitir que ele trabalhe depois de cumprir pena, ele volta para o crime. Não cabe a mim e nem a você, nem a nenhum preconceituoso, julgar isso: a Justiça é que tem que ajudar esse cara, mas não é o que acontece."

Antes de entrarem nos presídios, João Paulo, Amabílio e Nei "dominavam o Complexo da Maré", segundo Junior, e eram rivais, de fato. "A guerra da minha facção era direta com a do Nei: uma calçada ali na frente e já entrava na área dele. Uma vez, ele foi baleado por nós, quando entrou em uma 'boca' [de fumo] nossa, consegui balear ele e outro cara, e hoje eu vejo... Foi Jesus que nos guardou, um de cada lado, eu ainda tenho muito a aprender", conta Amabílio.

João Paulo, inclusive, conta que os três são "melhores amigos". Costumam frequentar as casas dos outros e visitar as famílias, entre gravações e roteiros. Já Nei define que o passado foi "um tempo perdido'. "O que fizemos: nadamos, nadamos e morremos na praia. Vemos que é possível, que projetos e pensamentos tendem a transformar vidas incomuns em comuns", define ele.

CHOQUE DE REALIDADE

Amabílio, o MB, já foi apontado como chefe do tráfico de drogas da comunidade Nova Holanda em sua detenção, em maio de 2014, e levado ao presídio federal de Catanduvas, no Paraná. Após cinco anos de reclusão, foi solto e, depois de sair da prisão, decidiu começar do zero.

"Mano Brown sempre fala que preto tem que ser duas vezes melhor. Egresso, então, tem que ser 10 vezes, porque enfrenta preconceito social, de todos os cantos", aponta ele, pai de duas meninas, uma de 20 e outra de 6 anos, presenças mais que constantes em seu Instagram quase que totalmente dedicado às imagens em família, com direito a idas ao estádio para torcer pelo Flamengo.

Antes do AfroReggae surgir na vida de MB, foi quase um fundo do poço. Após deixar o presídio, fez a carteira de habilitação e virou entregador de aplicativos de comida durante a pandemia, em 2020. Durante um dos atendimentos, foi reconhecido por um ex-colega de tráfico. "O cara ficou chocado de ver eu trabalhando, porque as pessoas achavam que eu tinha dinheiro. Era um desafio desconstruir essa vida passada. Não consegui seguir trabalhando porque tinha vergonha."

Eis que, entre uma indicação e outra, Amabílio foi acolhido pelo AfroReggae Audiovisual. Sorri ao contar, por exemplo, que atua nas terceiras temporadas de "A Divisão" e "Arcanjo Renegado", em papéis que crescem aos poucos.

Roberta Rodrigues, a protagonista de "Veronika", outra série em que ele integra o elenco e ajudou na produção como motorista, é seu xodó. "Ela se tornou amiga, irmã, pessoa que luta pela causa. Uma vez, postamos foto juntos, povo começou a reclamar e ela soltou: 'Amabílio trabalhou de consultor a motorista na série, bandidos são vocês' (risos)."

AUTODIDATA

Preso em 2003, indicado como um dos líderes da facção TCP (Terceiro Comando Puro), Nei foi condenado a um total de 26 anos e 10 meses de prisão. Cumpriu 20 anos da pena e ganhou liberdade condicional em janeiro deste ano. Dentro do presídio, ele aproveitou o tempo enclausurado para tentar tirar o atraso: concluiu o ensino fundamental e médio (tinha estudado apenas até o 5º ano), além de ter cursado Teologia, entregando o TCC ainda preso.

Fez ainda mais de 80 cursos profissionalizantes e, agora, segue como consultor de roteiro na AfroReggae enquanto se dedica à pós-graduação de Cinema e Linguagem Audiovisual pela universidade Estácio de Sá.

Para ele, o processo de ressocialização, que iniciou em 31 de janeiro deste ano, foi complexo. "Antes de ser preso, eu queria oportunidade para não estar no crime. Queria viver. O sistema penitenciário, seja ele federal ou estadual, não se volta para isso, só quer punir", acredita Nei, que lembra um momento, em 2008, quando decidiu prestar vestibular para a UERJ estando preso, mas não tinha material para estudar. "O sistema tinha obrigação de me dar essa oportunidade, mas ele não é voltado pra isso."

Logo que deixou a vida atrás das grades, foi recrutado pela AfroReggae. "Agora tenho que instruir os atores a chegarem o mais próximo da realidade e falo 'tá real, sim, continua'", diverte-se ele, que lista a interação com atores com Marcelo Mello Jr, Erika Januza e Heloísa Périssé como especiais. "Hoje só tenho arrependimento de saber que tinha potencial de ser alguém e fiz algo a mais do que deveria quando a dificuldade apareceu."

Por isso, enquanto a sociedade estiver de braço fechado, "a vida do crime sempre de braço aberto", pontua Nei. "Não tem o outro lado de deixar que isso aconteça. Tinha que existir mais ONGs."

BASTIDORES

Na contramão de Nei e Amabílio, que já despontaram como atores e consultores, João Paulo se orgulha de ficar nos bastidores após ter ficado preso por dois anos, entre 2007 e 2009, por ser ex-integrante da facção Amigos dos Amigos (ADA) e gerente geral de cerca de 10 favelas do Rio de Janeiro. "Quando saí da prisão, não queria mais isso para mim, vi meu pai morrendo."

O AfroReggae surgiu em sua vida em 2009, quando JP atuou na linha de frente da Empregabilidade, primeira agência de empregos formada por egressos do sistema penitenciário para vagas direcionadas a ex-prisioneiros. Ao mesmo tempo, passou a ser um braço direito de Junior na produção das séries, atuando principalmente como produtor de locação em favelas.

"Vi as besteiras que fiz e passei a interagir com pessoas, conhecer famosos, passei a ficar no meio da nata. Ninguém quer voltar. Pergunte a 10 traficantes se alguém voltaria. Nenhum quer ser bandido mais."

O trabalho deles é de fundamental importância para dar veracidade ao que se vê nas telas. "Tudo o que está ali na tela é 90% real", orgulha-se JP. E, com essa frase, ele entrega um spoiler: um dos próximos grandes projetos do AfroReggae coloca esses três ex-chefões na linha de frente de "Jogo Que Mudou a História". Com lançamento ainda sem data confirmada, a produção irá narrar o surgimento das facções a partir do presídio da Ilha Grande, com destaque inicial para a Noite de São Bartolomeu, massacre em 1979, dentro do presídio, que culminou na liderança e na criação do Comando Vermelho.

"Esse acesso à história e a uma importante fase do crime no Brasil que eles nos dão não tem preço. A gente acredita que todo ser humano merece oportunidade. O que motiva é poder mudar, transformar, evoluir vidas", finaliza Junior, também showrunner e escritor de boa parte dos roteiros do AfroReggae.