George Saunders explora política e ambiguidade moral em novos contos

Por MAURÍCIO MEIRELES

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Pode parecer uma contradição. Boa parte da indústria cultural tem explorado vídeos curtos, textos breves ou informações fragmentadas --mas, na literatura, o romance é a forma de maior sucesso comercial. Não é incomum editores reclamarem da dificuldade de vender livros de contos.

"Eu e meus alunos nos perguntamos se não somos parte de uma seita", ri o americano George Saunders, exemplo raro de autor que conseguiu se estabelecer principalmente como contista. "Mas me consola pensar que os fãs de contos são pessoas interessantes, que leram o suficiente para saber as diferenças entre um romance e uma narrativa breve."

Saunders lançou só um romance, "Lincoln no Bardo", em 2017, e faturou o prestigiado Man Booker Prize. Mas agora está de volta ao seu principal gênero, com "Dia da Libertação" (ed. Companhia das Letras), uma coletânea de nove histórias curtas.

Entre um livro e outro, publicou só "A Swim in a Pond in the Rain", ainda inédito no Brasil, com ensaios sobre mestres da narrativa curta russa, como Tchékhov e Gógol. A obra foi feita a partir do concorridíssimo curso de contos russos que ele ministra na Syracuse University, nos Estados Unidos.

"Escrever esse livro fez eu me apaixonar pelo conto outra vez", diz ele. "Tive a sensação de que nunca tinha escrito um conto bom na minha vida, que não fiz nada. Para um artista, é algo ótimo de sentir. Vi que há vários jeitos de depenar uma galinha."

Além das aulas de escrita criativa, ele também coordena uma mistura de clube do livro e oficina no Substack, onde analisa um conto por semana para assinantes, uma espécie de continuação de "A Swim in a Pond", dessa vez não só com os russos.

A dedicação à forma breve se manifesta, no novo lançamento, em um rigor construtivo. Além disso, há um claro recorte político em muitos dos contos de "Dia da Libertação" --algo que vem da perplexidade do autor com o próprio país.

"Percebemos que o trumpismo não precisa necessariamente de Trump. Ele trouxe muitas coisas à tona, mas essas coisas não vão voltar para o porão facilmente", afirma ele, acrescentando que o governo do republicano o fez olhar a própria história do país de um jeito diferente --e questionar uma suposta excepcionalidade americana.

"A narrativa sobre o que são os Estados Unidos sempre esteve errada. E agora temos que repensá-la. Mas temos que encarar isso de frente para que o país possa ser o que deveria ser. É uma oportunidade incrível, ainda que não seja confortável."

Esse estado de espírito se traduziu em personagens metidos em uma constante auto-reflexão, porque o próprio autor se vê no mesmo estado. "Queria voltar para 2008, quando eu sabia onde estava. Hoje não sei."

Mesmo com essas preocupações em mente, Saunders não coloca o trabalho de linguagem em segundo plano para priorizar apenas a temática das narrativas.

"Pra mim, a política só é interessante se ela se infiltrar através da linguagem", diz.

Na primeira história, uma espécie de ficção científica, seres humanos são escravizados e sofrem lavagem cerebral para realizar cenas diante de ricos, com uma linguagem criada a partir de comandos que recebem de uma máquina, numa espécie de inteligência artificial. A história se conclui com uma tentativa de reparar essa injustiça.

"Eu tenho minhas opiniões políticas, mas a linguagem tem uma opinião própria sobre o que funciona", diz Saunders.

As urgências do noticiário não impedem que o escritor viole a própria regra em prol do rigor. Em um conto como "Carta de Amor", por exemplo, a intenção política é excessivamente didática: na história, um avô escreve uma carta para um neto, num momento em que os Estados Unidos foram dominados por um governo antidemocrático. No documento, ele lamenta a própria covardia, reflete sobre o que um indivíduo pode fazer diante de um avanço autoritário --e pede que o neto não faça nada.

Mesmo nessa narrativa, em que parece deixar o esforço literário de lado em nome de uma mensagem de denúncia clara demais, Saunders explora a ambiguidade moral.

"Tchékhov dizia que uma história não tem que resolver uma questão, mas sim formulá-la corretamente", afirma Saunders. "Por isso acho que os contos não precisam expressar uma posição moral sólida. É preciso levar o leitor em uma jornada."

Por isso, é fácil identificar as questões políticas de muitos contos, mas difícil encontrar uma resposta óbvia sobre o que os indivíduos devem fazer diante da injustiça. O resumo da mensagem: a ficção deve fazer o leitor contemplar visões contraditórias sobre o mundo, numa permanente zona de desconforto.

DIA DA LIBERTAÇÃO

Preço: R$ 84,90 (256 págs.); R$ 39,90 (ebook)

Autoria: George Saunders

Editora: Companhia das Letras

Tradução: Jorio Dauster