Alana Portero transcende a literatura trans em livro que arrebatou Pedro Almodóvar
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - No início de julho deste ano, o cineasta espanhol Pedro Almodóvar instou o político conservador Alberto Núñez Feijóo, líder do partido oposicionista espanhol, a ler "Mau Hábito", romance de estreia da escritora madrilenha Alana S. Portero.
Feijóo havia criticado a Lei Trans aprovada este ano na Espanha, dizendo que, hoje em dia, é "mais fácil trocar de sexo do que tirar carteira de motorista" --a legislação desburocratizou a mudança de gênero no registro civil.
"Recomendo que ele leia o livro 'Mau Hábito', de Alana Portero, para que tenha ideia do grau de sofrimento, dor e risco enfrentado por alguém que nasce no corpo errado", disse o criador de "Tudo sobre Minha Mãe".
Ao ler, continuou o diretor, "o senhor Feijoó também descobrirá que o transexual, homem ou mulher, sabe o que é desde muito cedo, aprende a falar praticamente para gritar sua desconformidade". "A transexualidade é tudo menos um capricho."
De fato, o livro tem esse papel civilizatório. O romance, escrito em primeira pessoa, conta a infância e adolescência de uma menina trans presa em um corpo que não sabe habitar, em um bairro pobre de Madri devastado pela epidemia de heroína dos anos 1980, até chegar à noite madrilenha dos anos 1990 e ao retrato do cotidiano das travestis.
Mas "Mau Hábito" é muito mais do que uma obra que descortina a realidade trans.
"Quis escrever um romance de formação feminino, trans, operário e urbano, diferente da maioria dos romances de formação, que costumam ser protagonizados por homens", afirma em entrevista a escritora, poeta e dramaturga que, como a protagonista do livro, é uma mulher trans que cresceu naquele mesma época em um subúrbio operário da capital espanhola.
"É um erro considerar 'Mau Hábito' um romance de nicho, para poucos; com o livro, eu afirmo nosso direito de sermos universais", diz a autora, um dos principais nomes da programação principal da Feira Literária Internacional de Paraty que começa nesta quarta.
"É uma história de que qualquer um pode se apropriar: a personagem é universal porque é uma menina que se torna uma mulher com muitas dúvidas sobre quem vai ser, o que a espera na vida. E isso é o que nos une como seres humanos, nossa capacidade de pôr em dúvida o que será de nossa vida."
O romance foi a sensação da Feira de Frankfurt do ano passado --antes mesmo de ser publicado em espanhol, teve seus direitos vendidos para mais 12 países e será traduzido para oito idiomas. No Brasil, o livro lançado na Flip inaugura o selo Amarcord, do grupo Record.
Alana afirma que a obra não é autobiográfica, ainda que tenha conexões com sua vida. "Para construir uma ficção crível, precisava pavimentá-la sobre um solo firme, por isso usei conexões com minha vida. Mas apesar de a personagem se parecer comigo, não sou eu, há grandes diferenças."
A autora é formada em história na Universidade Autônoma de Madri e, na obra, mistura referências dos mitos gregos e contos medievais com o mundo pop.
"Para mim, têm a mesma importância Hildegard von Bingen [monja beneditina que era poeta e viveu no século 11], os trovadores da Idade Média e as letras do The Smiths, Lou Reed e Madonna. Eles são como santos para mim. Minha relação com o mundo pop foi uma revelação quase religiosa, eu me encomendava às divas pop e quase poderia rezar para elas."
O sucesso estrondoso de "Mau Hábito" revolucionou a vida da autora. "Em toda minha vida, escrevia com urgência, com um pé no abismo, com precariedade. O livro me deu condições materiais para ter uma certa tranquilidade no futuro imediato."
E o aspecto civilizatório da obra? "Não pretendia escrever um romance pedagógico ou político. Mas toda a minha existência é política e é inevitável que isso se decante no texto", diz.
Em relação ao ataque reacionário à legislação que garantiu direitos à população trans, ela afirma serem os estertores de um mundo do ódio. "É um mundo que está acabando, está morrendo", diz. Ainda que morra esperneando.
MAU HÁBITO
Quando: Lançamento esta semana, em maior circuito em janeiro; mesa da autora na Flip na quinta (23), às 15h
Preço: R$ 64,90 (288 págs.)
Autoria: Alana S. Portero
Editora: Amarcord
Tradução: Be RGB