Literatura não tem que apaziguar, afirma Bernardo Carvalho na Flip

Por MAURÍCIO MEIRELES

PARATY, RJ (FOLHAPRESS) - O escritor Bernardo Carvalho arrancou aplausos da plateia na Flip, nesta quinta-feira (23), ao repetir críticas que vem fazendo em público a uma literatura focada em temas de identidade e empoderamento.

Carvalho participou de um debate com a escritora Lucrecia Zappi na mesa "Ninguém É Puro Crime", na Casa Folha, com mediação do jornalista Walter Porto, editor de livros do jornal. Porto perguntou aos dois se a literatura vive um momento moralista.

"Mais do que moralista, há essa ideia [na literatura hoje] de você não ter condições de lidar com a diferença. A diferença da qual se fala é super domesticada, é espelho", iniciou o autor, que é colunista da Folha de S.Paulo. "A ideia de criar uma arte que seja reprodução de si mesmo, no sentido de criar uma autosatisfação, é algo empobrecedor."

E continuou o argumento. Disse que, em um momento de crises como a climática, não faz sentido buscar uma literatura apaziguadora.

"Esse fim do mundo é culpa nossa, e você quer se empoderar? [É algo que] não tem condições de lidar com a autocrítica", afirmou. "A literatura que me interessa não nos põe num lugar de paz."

Ao dizer essa última frase, Carvalho foi aplaudido pela plateia --e a luz de Paraty se apagou no mesmo momento. A cidade ficou às escuras por cerca de quatro horas, enquanto a concessionária Enel fazia reparos em uma linha de transmissão atingida por um raio.

Mesmo no breu, o debate ainda prosseguiu por um tempo à luz de lanternas de celular. Zappi precisou ser mais concisa, diante do calor no espaço com os ventiladores desligados, mas concordou com Carvalho.

"A literatura não é feita de facilidades. Estamos vivendo um momento de pequenos fundamentalismos. Personagens perfeitos não existem. Me perguntaram: você não tem medo de ser cancelada? No hora em que eu tiver medo, não vou mais escrever", disse ela.

Os dois chegaram a esse assunto depois de um debate que começou discutindo o fato de ambos terem desenvolvido personagens moralmente condenáveis em seus lançamentos mais atuais --"Os Substitutos", no caso dele, e "Degelo", no dela.

"Em geral, meus personagens têm um pouco esse lado incompreensível, perverso. Mas não acho que eles são absolutamente detestáveis, porque eles são a gente. Essa ideia de que o outro é sempre o mal e nós somos o bem nos coloca no lugar em que estamos hoje", disse Carvalho.

"Meu livro parte de muitas perguntas, têm um interesse, uma obsessão em torno desses personagens que estão em algum outro lugar que não o lugar natural de onde a pessoa saiu", acrescentou Zappi.

Mais cedo, a Casa Folha foi palco de uma conversa sobre a trajetória de Jacinto Figueira Júnior, que foi um dos precursores do sensacionalismo na televisão do país e ficou conhecido como o Homem do Sapato Branco.

Quem falou sobre o assunto foi o crítico de TV e colunista da Folha de S.Paulo, Mauricio Stycer, autor do livro "O Homem do Sapato Branco: A Vida do Inventor do Mundo Cão na Televisão Brasileira". Stycer foi entrevistado pelo jornalista André Barcinski.

"Em 1962 e 1963, quando ele começa, existiam ainda 500 mil aparelhos de TV no Brasil, ainda era muito caro", contou Stycer. "[Por isso] sempre tratamos essa fase da televisão como a fase elitista, quando as emissoras mostravam ópera e teleteatro. Mas não é verdade que mostravam só esse tipo de cultura. Havia programas de apelo popular dirigido a esse público de alta renda."

Em seus programas, Jacinto transmitia cirurgias, barracos de vizinhos, médiuns demonstrando habilidades, um homem que se dizia grávido, ceias para sem-teto e confusões na rua. E também os casos policiais, que mais tarde seriam tema de vários imitadores.

Stycer ainda tentou explicar o apelo que programas como os de Jacinto e de apresentadores influenciados por ele têm junto ao público.

"Uma parte do sucesso desses programas é a capacidade de provocar medo em que está vendo. E a pessoa vicia", disse ele, defendendo que jornalistas se dediquem a analisar esses fenômenos populares. "Temos que descer do banquinho e analisar isso. Tenho preconceitos vindos da minha formação, mas procuro me despir disso."

Questionado pelo entrevistador, Stycer explicou as dificuldades de realizar esse tipo de pesquisa, dada a escassez documental da primeira fase da TV no país.

"Praticamente não existem arquivos dos anos 1950. No caso dos anos 1960, há pouquíssimo. Teve incêndio em praticamente todas as emissoras, como Cultura, Tupi e Globo", afirmou o crítico.

Ele também se queixou do fato de os catálogos das emissoras não estarem mais facilmente acessíveis.

"Elas vendem cinco segundos por R$ 10 mil, uma imagem. O que me salvou e salva é uma turma de pessoas abnegadas que fizeram gravações da programação desde os anos 1970."

O crítico também apostou, apesar das mudanças no mercado de comunicação desde o surgimento do Homem do Sapato Branco, na força da TV aberta no país --o principal palco desses programas populares.

"A TV aberta está em 95% dos lares. Já foi vaticinada a morte dela várias vezes, a audiência está pulverizada, mas ela ainda domina bem o mercado", concluiu Stycer.