Entenda por que o Porta dos Fundos cancelou o especial de Natal deste ano
NITERÓI, RJ (FOLHAPRESS) - Em agosto, a fortaleza de Santa Cruz da Barra, lugar histórico de Niterói às margens da baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, foi ocupado por tochas de fogo, cabritos e tendas com produtos típicos do comércio árabeoriental da Antiguidade. Era a gravação do especial de Natal do Porta dos Fundos, que seria exibido pelo Paramount+, mas acabou cancelado nesta terça.
Sem fazer referência ao conflito entre Israel e Hamas, o grupo de humor afirmou que, quando o especial "foi escrito e filmado, o mundo não enfrentava o que enfrenta hoje", que "humor é timing, e o timing para esse lançamento não é o adequado", já que "a atual conjuntura pode fazer com que o olhar cômico se transforme em outra coisa".
A reportagem perguntou ao Porta dos Fundos se, afinal, o filme foi cancelado ou será exibido no futuro. A assessoria do grupo afirmou não ter informações a respeito disso e que o diretor da produção, Rodrigo Van Der Put, não daria entrevistas a respeito.
Com roteiro de Fábio Porchat, o especial consistiria num "stand-up comedy" dos tempos antigos. As piadas eram baseadas em casos inusitados ou desconhecidos do Velho Testamento.
Uma delas tratava de Saul, o rei que unifica as tribos dispersas da região da antiga Judeia e da Palestina e compõe o estado de Israel. A história faz parte do livro de Samuel, o juiz que o nomeia rei por escolha de Deus. O rei conhecido é derrotado numa batalha contra os filisteus, um povo de origem árabe.
Num encontro com Davi, seu genro e futuro rei de Israel, Saul entra numa caverna "para fazer suas necessidades", conforme narra o Velho Testamento. Esta seria uma das piadas do especial, que abordaria ainda "Sansão e Dalila" e outros. O objetivo era trazer este olhar para a Bíblia por meio do humor. "Ninguém lê a Bíblia", afirmou Porchat.
A reportagem acompanhou uma das noites de gravação e conversou com Porchat, que usava o figurino de seu personagem, composto por peruca e túnica com saia. O ator descartou riscos de protestos. "Ninguém liga para o Velho Testamento", disse o humorista.
No ano passado, este repórter também acompanhou um dia das gravações do último especial, quando o diretor Rodrigo Van Der Put afirmou que a perseguição de grupos religiosos contra o grupo foi um período dramático de sua vida.
O sofrimento se deve ao atentado à sede da produtora em dezembro de 2019, ano do especial "A Primeira Tentação de Cristo". Produzido pela Netflix, o filme conta a história de um regresso de Jesus Cristo, interpretado por Gregório Duvivier, para o seu aniversário de 30 anos após 40 dias no deserto, levando para a casa dos pais, José e Maria, um suposto namorado, que era vivido por Porchat.
O filme sobre "Jesus Cristo gay", como ficou conhecido, os levou a ser processados pelo Centro Dom Bosco, grupo católico de extrema direita que tem a atriz Cássia Kis como "garota-propaganda". Eles pediram a retirada do filme do ar.
À época, Van Der Put precisou passar um tempo fora do país. O Porta dos Fundos e a Netflix acabaram vitoriosos. O economista Eduardo Fauzi, acusado de participar do atentado, ficou foragido, mas foi preso em março de 2022.
O diretor afirmou que não se censura em decorrência desses eventos. "O importante é estar engraçado", disse. Entretanto, as gravações de "O Espírito do Natal", o especial do ano passado, já sinalizavam as preocupações da trupe com o "cancelamento". Uma das piadas, sobre primos que fazem "brincadeirinhas" com primas nas festas de Natal, foi alvo de muito debate até ser mantida.
No ano passado, o grupo trocou a temática religiosa por terror. No lugar de um Cristo gay, havia como personagens as figuras clássicas do Natal, como a Mamãe Noel, que virou uma serial killer.
Porchat afirmou que o grupo sempre inova e que isso não tinha relação com os protestos religiosos. Disse ainda que humor com temas religiosos continuava sendo feito pelo canal do grupo no YouTube.
No entanto, neste ano, ante o conflito entre Israel e Hamas e os crescentes protestos pró-Palestina, o grupo se absteve de fazer qualquer menção a reis míticos de Israel. Ou mesmo de apedrejar o personagem vivido por Porchat, que fazia alusões às ideias de Jesus Cristo, descendente de Davi, ligadas ao amor e ao perdão em uma das cenas.