A boa missão de Mariana Aydar
Aproximadamente, a cada dez anos o mercado fonográfico aposta pesado e lança novas cantoras. Recordo-me que, no início dos anos noventa, destacavam-se as ditas “cantoras ecléticas”, aquelas que diziam poder cantar tudo sem perder a identidade, pois sua identidade residia justamente na coragem e estranheza com que misturavam ritmos e estilos.
A princípio, usou-se até uma justificativa que sofisticava a falta de método. Dizia-se, por exemplo, que elas seguiam a linha evolutiva dos tropicalistas, que a miscelânea despropositada era fruto de uma consciência, de um upgrade intelectual. Nada disso se conseguiu provar e poucas foram aquelas que sobreviveram, mesmo assim, com um trabalho diferente daquele modismo.
Marisa Monte, aquela que ironicamente era chamada por Nana Caymmi de “a cantorazinha de Nova York”, conseguiu se firmar depois de um disco de estreia ousado para os padrões mercadológicos. Ela gravou Gershwin, Roberto Carlos, Titãs, Rita Lee, Luiz Gonzaga e Tim Maia. Afinadíssima, Marisa mostrava todos os seus malabarismos vocais e inquietava público e crítica, que tentavam defini-la.
Já a gaúcha Adriana Calcanhotto não foi tão bem sucedida em Enguiço, seu trabalho de estreia. Conseguiu emplacar em todas as rádios do país o sucesso de Naquela estação, bela canção do trio João Donato, Caetano Veloso e Ronaldo Bastos. Mas, em compensação, amargou terríveis críticas às suas interpretações de Disseram que eu voltei americanizada, de Luiz Peixoto e Vicente Paiva, sucesso inesquecível na voz de Carmem Miranda, e Nunca, de Lupicínio Rodrigues. Adriana viu seu up diferencial ser transformado em armadilha contra si mesma. O deboche, a performance, e sua interpretação num tom um pouco “elevado demais”, fizeram com que parte da crítica não entendesse sua postura antropofágica e a considerasse over demais, desafinada, sem futuro.
Passaram-se mais de dez anos e a duas intérpretes sobreviveram e adquiriram mais força e respeitabilidade. Adriana Calcanhotto, sobretudo, foi desenvolvendo trabalhos que vão de certa forma na contramão da proposta inicial. Trabalhos que mantêm com certeza a força da inteligência crítica. Mas que, em termos de interpretação, seguem cada vez mais uma uniformidade. Os arranjos são mais leves, as interpretações cada vez mais cool: do excesso de Enguiço, ela partiu para a contenção minimalista de A Fábrica do poema.
Todo esse prelúdio é só para falar de Mariana Aydar, figura para mim absolutamente desconhecida até alguns meses, quando ganhei de presente de aniversário seu primeiro cd, Kavita. Desde o encarte, uma montagem de várias fotos de Mariana, realizada pelo renomado fotógrafo Bob Wolfenson, nota-se a sofisticação de Kavita. O tom clean das imagens mostra o belo rosto da jovem cantora paulista de vinte e seis anos, que iniciou sua carreira ao vinte, tendo como grande incentivadores sua mãe, a produtora Bia Aydar, e seu pai, o músico Mário Manga.
A presença de compositores é diversificada: João Nogueira, Paulo César Pinheiro, Chico César, Leci Brandão, Théo de Barros, João Donato, Rodrigo Amarante, Danilo Caymmi, Giana Viscardi e Eduardo Gudin. Mariana se inclina mais para o samba, suas interpretações trazem um quê de moderno às canções, que é capaz de atrair a juventude mais conectada no som eletrônico. Não chega ao extremo de um Sérgio Mendes, que em certas ocasiões retalha as músicas com uma profusão de invencionices eletrônicas.
A voz de Mariana Aydar revela extensão e um timbre bonito, que a faz transitar entre interpretações mais suaves, como Vento no canavial, de João Donato e Lysias Ênio, e interpretações viscerais como a impactante Zé do Caroço, de Leci Brandão.
Confesso que nunca ouvi Leci Brandão interpretar essa canção de sua autoria, nem mesmo sei se ela a gravou, mas ouso afirmar que essa deve ser a melhor gravação que a música já recebeu. O arranjo é primoroso, a composição é uma espécie de sambolero, com destaque para a marcação do baixo de Marcio Arantes e o bongô e demais instrumentos percussivos de Bruno Buarque.
Zé do Caroço é o grande destaque do cd, o dueto entre Mariana e Leci Brandão é pungente. O contraste entre a voz aguda da cantora paulista e a voz grave e repleta de força de Leci gera um excelente resultado: “Que o Zé do caroço trabalha/ Que o Zé do Caroço batalha/ E que malha o preço da feira/ E na hora que a televisão brasileira/ Distrai toda a gente com a sua novela/ É que o Zé põe a boca no mundo/ Ele faz um discurso profundo/ Ele quer ver o bem da favela/ Está nascendo um novo líder/ no morro do Pau da Bandeira”.
Minha missão, samba de João Nogueira e Paulo César Pinheiro, também é um dos pontos altos desse trabalho de estreia. Mariana Aydar escolheu com muita propriedade esta canção para abrir seu disco, já que a letra é um manifesto de dor e garra pela sobrevivência do canto, da canção: “Quando eu canto/ É para aliviar meu pranto/ E o pranto de quem já/ Tanto sofreu/ Quando eu canto/ Estou sentindo a luz de um santo/ Estou ajoelhando/ Aos pés de Deus/ Canto para anunciar o dia/ Canto para amenizar a noite/ Canto pra denunciar o açoite/ Canto também contra a tirania/ Canto porque numa melodia/ Acendo no coração do povo/ A esperança de um mundo novo/ E a luta para se viver/.../Aos que vivem a chorar/ Eu vivo pra cantar/ E canto pra viver”.
Mariana Aydar chega em boa hora, num momento em que o mercado fonográfico carece de cantoras que ultrapassem o mero modismo. Kavita deixa evidente que Mariana sabe ao que veio. Ela se inspira nos grandes da nossa música e foca seu olhar no futuro: “Foi ouvida a minha súplica/ Mensageira sou da música/ E eu cumpro o meu dever”.
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