Luminoso Gilberto Gil

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Luminoso Gilberto Gil

Luminoso Gilberto Gil

Daniela Aragão 20/11/2019

“Morrer deve ser tão frio quanto na hora do parto”. Como falou dia desses minha querida prima Simone Panisset, tenho andado com muito medo de ligar qualquer aparelho eletrônico, que me traga alguma notícia do chamado do dia da senhora “indesejada das gentes”. As águas de março vem se aproximando numa intensidade galopante e vertiginosa a transportar gentes da minha mais amada ampla orquestra de sons. Paulo Russo, Arthur Maia, Miúcha, Tavito. Daqui a pouco acontecerá a despedida à la Quincas Berro d’Água do anfitrião imenso de afeto Alfredinho do Bip Bip. Antes de anunciar a quarta feira de cinzas, Alfredinho voa como Vadinho, poupando-se da tarefa de amansar tanta ressaca no país do carnaval.

A indesejada das gentes nomeada sem medo, sem o Pedro e tantos: “Deus me livre de ter medo agora/Depois que eu já me joguei no mundo/Deus me livre de ter medo agora/Depois que eu já pus os pés no fundo/Se você cair, não tenha medo/O mundo é fundo/Quem pisar no fundo encontra a porta/Do fim de tudo”.  Gilberto Gil discorria tranquilo e sereno sobre a morte no programa de Pedro Bial “sereno quer dizer que você será/será suave, ameno e tranquilo, será?”, enquanto o apresentador tentava equilibrar, com preceitos filosóficos sua mácula de serenidade plástica na Vênus Platinada.

O Gilberto Gil metafísico inspirou-me uma audição obsessiva de seu “Gil luminoso”, que culminou numa crônica que escrevi acalentada pela quentura do sol de Teresina. Passei meses e meses embotada, com medo do prenúncio sereno da viagem anunciada de Gil. Ok, ok, ok, o tempo transcorreu, até que numa manhã num passeio sonoro pelo Youtube me deparo com o clip tão lindo de “Uma coisa bonitinha”. “Uma coisa bonitinha/que é mamãe/Outra coisa ainda mais bonitinha/Que é vovó/Mamãe, um rostinho Michelangelo/vovó, um corpinho estilo Caribé/Mamãe, usuária assídua do metrô/Vovó, bicicleta sempre que puder/Mamãe, materialista de bom tom/Vovó, idealista da cabeça ao pé”.

Céu azulzíssimo, ao longo o mar e as pedras do Arpoador. Um mediano quadrado confeccionado com pedaços de tecidos floridos ganha amplitude multicolorida a servir de pano de fundo para as diversas mulheres: mamães, vovós. Brancas, louras, negras, magras, gordas, enrugadas, altas, baixas. Um amplo tecido de singularidades femininas “é a sua vida que eu quero bordar na minha / como se eu fosse o pano e você fosse a linha”, no bordado – rebolado de  cada anônima mulher que se expressa em seu livre movimento.  A solaridade de Ipanema contrasta com o branco e preto do estúdio, aquecido pelo encontro dos magos do swing Gilberto Gil e João Donato. É tudo muito mais que bonitinho, é boniteza,  bonitasso ver dois mestres  irmanados a sorrir com uma leveza de meninos.

Dou mais dois cliques no mouse “O pensamento é nuvem/o movimento é drone/o monge no convento/Aguarda o advento de Deus pelo Iphone” e surge o hino de reverência as tartarugas, um animal adverso, na contramão em tempos tão velozes como os de agora. Gil saúda o planeta das tartarugas ninjas que preenche o imaginário de seu neto: “Anauê, tartaruguê/Anauê, tartaruga/Mera invenção/Hora de me iludir/Pura emoção/Afoxé, axé, axé, axé, axé/Sei que anauê/É uma saudação”. O clip de uma beleza comovente coloca em cena crianças- tartaruguinhas, com seus cascos feitos apenas por pequenas cestinhas de formato oval fixadas nas carcundas. Segura Corisquinho, e vai compondo sua coreografia o menininho- tartaruga, com suas duas tiras entrecruzadas no peito, dando suporte ao frágil casco. O ir e vir das ondas do mar que arrebentam sob os pés dos pequenos. Gil luminoso, homem velho menino a se desprender no infinito da magia criativa das crianças. A mais poética biópsia musical dança um ballet de glóbulos brancos e vermelhos em “Quatro pedacinhos”. Ápice de inspiração transfigurada do pleno Gil Luminoso, que em catarse alquímica transforma em canção o processo tão doloroso de ser cortado em tantos pedacinhos. O compositor, alquimista de cada filigrana de sensações converte em sublime incisão lírica cada talho de dor: “Ela mandou arrancar quatro pedacinhos do meu coração/Depois mandou examinar os quatro pedacinhos/Um para saber se eu sinto medo/Um para saber se eu sinto dor/Um para saber os meus segredos/Um para saber se eu sinto amor”.

Jessica Lange/Angelique, a diáfana noiva vem se aproximando a cada instante numa contagem regressiva para a chegada da “indesejada das gentes”. Prossegue amedrontado e ébrio o coreógrafo bailarino Roy Scheider/Joe Gideon, alter ego de Bob Fosse para sua derradeira dança em “All that Jazz”. A indesejada das gentes também veste branco em “Quatro pedacinhos”, flor fêmea que resiste com seu perfume orgânico de sangue rubro. Gil é frágil forte paciente do destino.

No álbum “Quanta” Gil compôs uma obra prima em homenagem ao saudoso ator Mario Lago, cuja sabedoria comungada é precoce observação especular: “Rugas no rosto moreno /Ondas no lago sereno/Vento repentino/Ares de menino// O velho Mário Lago/O velho, o mar e o lago/O mar e o lago/A alma bem resolvida/A embarcação ancorada/Mar incorporado/Mares do passado/Aqui agora”. Aqui e agora é o melhor lugar do mundo para o compositor revelar a constatação de seus “sinais de defeito”: “Jacintho/Já sinto aqui no meu peito/Alguns sinais de defeito/Coração, pulmões e afins//Velhice/Cálculos, calos, calvície/Hora de chamar o vice/Para assumir o poder”. Gil homenageia Jachinto, amigo quase centenário que traz a força da longevidade.

O amor se dilata na magnitude com que Gil passeia com seu olhar de Super Homem delicado, através de tantas singularidades femininas “Um dia, vivi a ilusão/De que ser homem bastaria/Que o mundo masculino/Tudo me daria/Do que eu quisesse ter”. “Afogamento”, deslumbrante dueto com a cantora Roberta Sá.  Submerso, inundado nas águas instáveis e perturbadoras da paixão. Casamento pleno de sonoridade transcendente o contraste entre a gravidade do canto de Gil e a suave voz afinada e de espectro agudo de Roberta Sá: “Me agarrei /àquele corpo liso e me deixei levar/Ao lado seu sorriso aberto a me guiar / Então eu relaxei e me entreguei/completamente ao mar”.

Pura epifania lírica sonora “Lia e Deia”, composição que consiste na mais absoluta reverência do homem Gilberto Gil ao mundo vasto de mulheres que o rodeiam e inspiram. Lia e Deia, Deia e Lia, uma roda em incessante movimento de jovens e senhoras  que circundam de poesia e perfume afetuoso a ânima do criador. Aplausos para o belíssimo clipe, que celebra sem cair no lugar comum um ágape apetitoso de amores: “Uma, tamanho, tamanho, tamanho pé de laranja/A outra, tamanho, tamanho, tamanho pé de mamão/Uma assim broto de soja/A outra assim mais broto de feijão”.

Canceriano mergulhador de densidades aquáticas profundas, Gilberto Gil traça seu périplo por todos os elementos. Fixa seus pés na terra em “Orvalho de Maria”, raízes firmes e crescidas no presente dos legados familiares, que até ele chegaram e a partir dele seguirão. “Sol de Maria” aquece a força da vida vingando de sol: “Se a vida resolveu que iria lhe chamar de sol/Um raio vivo desse nosso astro rei/Que seja a luz do dia, sua guia, seu farol/Porque da noite, amor, da noite eu não sei”.

Toda a imensidão de afetos e celebrações de gratidão do incomensurável Gilberto Gil não se encerra, juntamente se irmana em sua poética de ser devotado aos mistérios de uma fé que não se limita a dogmas ou apelos crentes. Nos seus retiros espirituais deixa apenas uma “Prece” singela : “Rezarei por ti todos os dias/Todos os dias rezarás por mim/ Num pacto de orações e de energias/Que os nossos corações fazem entre si”. Gilberto Gil é criador luminoso e “Ok Ok Ok” eu escuto em estado de devoção encantada.