Entrevista com o compositor e cantor Thiago Miranda

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Entrevista com o compositor e cantor Thiago Miranda

Entrevista com o compositor e cantor Thiago Miranda


[COLUNISTA_NOME] 9/05/2020

Daniela Aragão: Como começou a percepção do som em sua vida?

Thiago Miranda: Quando penso no início, as lembranças são confusas, difusas e muito ricas. Eu cantava o tempo todo e minhas recordações são de muito envolvimento com a música. Sempre cantando. Eu não tive um berço musical. Quando eu estava com seis para sete anos, ficava em casa com uma vassoura. Eu já tinha percepção da acústica, o que eu queria fazer lá tinha reverberação. E eu ouvia muito aquele lance do Roberto Carlos no final do ano, acho até que para ser uma fuga ao que eu escutava sempre. Eu pegava a vassoura e ficava com ela enclausuradinha, como se fosse um pedestal do Roberto Carlos e cantando na garagem. A pleno vapor.

Outro dia comentei com minha esposa, como eu tinha um vigor vocal. Tinha um rapaz gravando uma chamada outro dia, do outro lado da rua dava para perceber que era acústico e lá de casa eu estava ouvindo. Eu era assim antes de começar a cantar profissionalmente e eu cantava gostando mesmo.

Daniela Aragão: Suponho que era tão natural para você o ato de cantar que independia do momento. Tristeza, alegria, surpresa, tudo era motivo para cantar.

Thiago Miranda: Era como se eu quisesse colocar alguma coisa pra fora. A necessidade de estar sempre cantando. Hoje eu nem consigo mais projetar a voz se eu quiser. Eu não tive um berço musical muito favorável, não se trata de desfazer minhas origens, mas foi muito limitado. Fui criado por uma tia mais velha e com filhos mais velhos, primos e irmãos que só ouviam o que estava no mainstream. Meus dez primeiros anos de vida foram exclusivamente Zezé de Camargo e Luciano, Leandro e Leonardo Xitãozinho e Xororó. Eram aqueles “Amigos da Rede Globo” que todo ano estavam lá. Eu sabia de cor e salteado, eu cantava Zezé de Camargo no tom e com aquele vibrato. Era a única referência musical que eu tinha. Eu imitava o Roberto Carlos, pois já estava querendo fugir do sertanejo.

Daniela Aragão: Era assim então o ambiente doméstico.

Thiago Miranda: Com certeza, tanto que me lembro de que as minhas primeiras referências com música foram dentro desse contexto. A primeira vez que a minha mãe biológica me levou para sair à noite, com permissão da minha velha foi marcante. Fomos ao show do Raça Negra, ouvi pela primeira vez o som de um saxofone e fiquei apaixonado. Virei pagodeiro. Eu queria fugir daquela coisa que eu estava embebido.

Daniela Aragão: Você gostava daqueles vibratos?

Thiago Miranda: Como é que você pergunta pra um cara que só come arroz e feijão se ele gosta de arroz e feijão? É a sua subsistência e ele ama aquilo. A única referência de música que eu tinha era o sertanejo e acho que já com uma tendência para fugir, por meio da escuta do Roberto Carlos. E olha que Roberto Carlos era só uma vez por ano. Quando ouvi o Raça Negra, me apaixonei e à medida que ia ouvindo outras coisas, ia ficando fascinado por tudo que ia conhecendo. Eu estava muito restrito a um universo muito limitado. Independente do que eu estava cantando.

As minhas lembranças da infância são assim e independe do que eu estava sempre cantando. Em seguida surgiu também a ascensão do cenário funk. De certa maneira eu posteriormente saí disso tudo.

Daniela Aragão: Interessante como na verdade esse cenário que você me relata te forneceu possivelmente um olhar, uma flexibilidade. Talvez se você não tivesse vivenciado esse referencial, não teria a habilidade musical que possui. Seria mais “engessado”.

Thiago Miranda: Pois é. Então prosseguindo esse mergulho no passado. Em 94 eu tinha dez anos e veio o Hollywood Rock e minha irmã exerceu um papel crucial, para ampliar minha percepção musical. Minha mãe começou a me liberar aos pouquinhos, para eu dormir na casa dessa minha irmã por parte de pai. Ela colocava muito Skank, reggae. Tinha também Youbefore, Alpha Blondy. Eu percebo o Alpha Blondy como uma banda gospel de reggae. Com minha irmã, comecei a adquirir o hábito de ouvir a rádio Transamérica. Eu ligava para pedir música. Pedimos Tridental, que era o Twist and shout (risos). Ficávamos esperando a música tocar e quando começava,  era só apertar o botão rec que tinha no gravador.

Minha irmã possuía também um caderninho de letra de música. Devo a ela minha caligrafia, que em geral acham que parece letra de mulher. Gisele morreu funkeira, ouvia Racionais Mc, funk.

Daniela Aragão: Você perdeu essa irmã?

Thiago Miranda: Sim. Minha irmã Gisele morreu de câncer faz quatro anos. Foi por ela que fiquei com um cabelo enorme, sete anos sem cortar, em função de uma promessa que fiz na fase da doença dela. A canção Gisele, compus dedicada a ela. Depois eu mudei um versinho, para permanecer atual. Tem uma música chamada “Minha religião é você”, que gravei em homenagem a ela. Minha irmã me deixou muitas coisas bonitas com essa batalha. Os médicos lhe deram seis meses de vida. Quando descobriu tinha trinta e dois anos, morreu aos trinta e seis, com quatro anos e meio de luta. Deixou um filho de dez anos. Foi uma grande guerreira. Cheguei a ter tempo de dizer a ela sobre o quanto foi importante para a abertura da minha cabeça.

Daniela Aragão: Sua irmã Gisele de certa maneira facilitou consideravelmente a expansão de suas audições?

Thiago Miranda: Eu aprendi a ouvir tudo, hoje eu consigo ouvir o que a princípio não me soava tão bem. A gente vai apurando a audição.  Procuro ouvir muito além da voz do cantor, fato que antes era diferente, pois eu me limitava a focar na voz. Concentrava minha audição somente na coisa do cantor. A meu ver, boa banda só poderia existir com um bom cantor, uma percepção que atualmente revejo com certas limitações. Meu universo restringia-se a timbre vocal, postura vocal. Mais tarde, quando passei a mergulhar no samba e na bossa nova, esses dois gêneros fincaram meu pé no chão.

Daniela Aragão: João Gilberto foi impactante pra você?

Thiago Miranda: Não, eu não descobri João Gilberto no contexto que deveria ser. Descobri quando todo mundo já estava embebido. Foi mais um que chegou na avalanche . Fui apresentado ao João Gilberto através de seus filhos musicais. O violão de João é incrível. Cheguei a comprar toda a coleção da Folha  e li todas as histórias. Fiquei de fato enlouquecido por Johnny Alf , que acho que possui um “desafino musical”, uma dissonância genial. Adoro Cauby Peixoto, Nana Caymmi, gente que tem fama de desafinado.

Daniela Aragão: Johnny é um dos precursores da bossa nova e acho que não teve o reconhecimento devido em vida.

Thiago Miranda: Johnny tem uma coisa que não dá pra replicar. Uma microafinação. Incrível como a bossa nova me chegou como um bloco. Hoje então, apesar de ter enveredado por tantas coisas, eu me considero um cantor de MPB e samba. Samba é MPB e acho sambista quase uma religião. Também não me acho um típico cantor de samba.

Daniela Aragão: E o jazz?

Thiago Miranda: Veio como experiência prática, através de exercícios. Quando eu estava no processo de desenvolvimento de meu primeiro cd, a banda se dissolveu. Quando vi, minha banda era um músico só. Comecei com meu sustento no ofício de empreendedor, se não dá pra fazer a cena, vira isso pra cá, arreda o banco, pega uma luzinha de improviso. Por um lado foi muito bom, por outro sinto que fui um pouco abusado. Os donos dos ambientes se aproveitavam do meu instinto empreendedor e se isentavam de qualquer responsabilidade. Colocavam na minha mão e eu rachava o bolo com o artista. Hoje, alguns artistas falam que fiz milagre, que fiz acontecer shows, que seriam praticamente inviáveis. Sempre fiz tudo para dar certo, desde a arte gráfica. Tudo o cuidado que eu tinha com o meu trabalho eu reproduzia da mesma maneira no trabalho dos demais artistas.

Daniela Aragão: E o tempo em que você fez parte do terça jazz?

Thiago Miranda: No contexto do Restaurante Bacco criamos a Terça Jazz. O baterista Gladston, o baixista Adalberto e o guitarrista Rafael Gonçalves compunham um trio que tocava direto lá. Comecei a ouvir bastante Chet Baker, revisitar outros. Foi uma época em que eu mergulhei no jazz. Devo destacar a importância do músico Salim, que foi para mim um grande mestre. Salim me passou arranjos sofisticados, me trouxe muito ensinamento.

Daniela Aragão: Quando você compõe vem letra e música de cara?

Thiago Miranda: Geralmente vem. O que tem acontecido às vezes é que a música não vem toda. Vem a estrofe com a música e letra e eu desenvolvo a letra. Depois vou pensar sobre qual caminho irei tomar no segundo momento da música. É mais comum que venha junto. Quando comecei a compor e acreditar no meu trabalho, as pessoas passaram a acreditar. Acho que posso me dizer compositor. Eu não tinha uma disciplina, um ofício periódico, mas comecei a me forçar quase que todo dia. Aí comecei a escrever muito mais que compor. Hoje tenho material de poesia que transcende à música. Tenho o ideal de fazer um livro que se chamaria “Será que dá música?”. Primeiro eu reduzi a autocrítica de vez, tudo o que eu escrever manterei, a não ser que eu achar que não terminei minimamente. Não interessa se está definitivamente pronto, eu vou publicar.

Quando vi, eu colocava hashtag, “será que dá música”. Encontrei depois oitenta poemas lá. Agora abri um grupo, o Facebook possui esse lance de lembrança do passado. Tudo que ele me lembra, estou jogando para esse grupo só de poesia. Estou pensando  futuramente tentar encontrar coerência para criar uma obra. Comecei a fazer parcerias comigo mesmo, o Thiago de trinta e quatro com o Thiago de trinta e cinco.

Daniela Aragão: Você está com quantos anos?

Thiago Miranda: Trinta e cinco. Então comecei a fazer agora com trinta e cinco, melodias para o Thiago de trinta e três e trinta e quatro anos. É engraçado.

Daniela Aragão: Eu gostei imensamente desse disco. A melodia tão bela do Cacaudio.

Thiago Miranda: A partir daí comecei a perseguir o tema. Quando percebi, já tinha cinco sambas que tratavam de mulher. Fui cuidado por mulheres e sempre tive um fascínio por elas. Tenho uma grafia de mulher, motivo que levavam a me chamar de mulherzinha quando pequeno, pois os assuntos machistas não me encantavam. Nunca dialoguei no papo de futebol dos homens. Sempre dialoguei no feminino. Quando ouvi “Super Homem a canção” eu chorei e me entendi, eu me encontrei e achei aquilo maravilhoso.

Daniela Aragão: A tão bela composição te fez reconhecer sua faceta sensível. Com menos densidade que a reflexão de Gil em “Super Homem”, acabo me recordando da canção de Pepeu Gomes que ficou famosa “Se ser um homem feminino não fere o meu lado masculino”.

Thiago Miranda: De repente me dei conta de que eu tinha quatro, cinco sambas que tratavam de mulher. Eu já sabia o que eu pretendia e que iria abrir o disco com “Super Homem a Canção”. Quando ouvi todas, fiquei sem dormir, eufórico. E assim como abri com a música do Gilberto Gil, tive a alegria e honra de fechar o disco com uma composição do  Carlos Rennó, que por sorte,  foi ultra, mega acessível. Ele me mandou mensagem dizendo que estava honrado pelo fato dessa música fechar o disco.

Daniela Aragão: Então a partir desse mote você foi conduzindo a evolução do trabalho.

Thiago Miranda: Quando fiz o “Samba pra elas”, confesso que criei com a expectativa de concorrer ao “Prêmio da Música Brasileira”. Quanto ao mercado, a gente nunca sabe o que vai dar certo. Procurei construir um disco impecável, no que diz respeito à técnica, coerência, conceito. “Música e palavras” é um disco lindo, mas não tem conceito inteiramente maturado. É meu primeiro disco e me apresenta como cantor, nele canto bolero, funk americano, blues, bossa, choro, trata-se de um disco plural.

Daniela Aragão: Poderia falar um pouco mais de “Música e palavras”?

Thiago Miranda: Quatro músicas são minhas, outras de Arnaldo Huff, Dudu Costa, Hudson Coelho, Roger Rezende. Tanto que dei o nome de “Música e Palavras”, que é uma canção de Rosana Britto. Este disco acabou se limitando a um conceito relativamente vago. Já em “Samba pra elas”, me detive com cuidado nas pessoas que eu considerava importantes para o disco. Celinho Silva no pandeiro e choro, botei o Sagalote, que está sempre com o Diogo Nogueira e faz um trombone fantástico. Coloquei o Paulão Sete Cordas, que é o violonista do Zeca Pagodinho. Gastei todo o tempo, energia, prestígio e grana, além do financiamento da Lei Murilo Mendes. Fui pretensioso.  Eu sabia que aquele ano tinha sido de pouca produção de disco. Vi que o Martinho da Vila iria lançar e não lançou, Diogo Nogueira seria um super concorrente.

Daniela Aragão: Como se deu o processo de produção?

Thiago Miranda: Produzi onze das treze faixas. Coloquei uma faixa nas mãos do Alceu Maia (que eu queria), outra com Luiz Felipe de Lima,  que por sua vez trouxe Dirceu Leite para tocar. Fiz tudo o que podia visando o melhor resultado, honestamente. Desde o dia primeiro de Janeiro de 2017 até o dia 14 de junho, data que saiu o resultado do prêmio. Eu temia que o prêmio não saísse aquele ano, pois foi patrocinado pelo próprio Zé Maurício Machline no ano anterior.

Daniela Aragão: Tendo sido contemplado entre os melhores trabalhos, o que você teria a dizer sobre eventos como este?

Thiago Miranda: Todo concurso, festival possui uma política de auto-manutenção, se ele não dialogar minimamente com o mercado, acaba sucumbindo. Suponha que amanhã três artistas como eu desconhecidos façam os melhores discos de samba do ano. Se o cara não der uma vaga nesse prêmio para o Diogo Nogueira ou Zeca Pagodinho, mesmo que hipoteticamente eles tenham feito péssimos trabalhos. Se ele não colocar um desses caras, o prêmio não vai acontecer, não vai ter patrocínio. Acredito muito na lisura do Zé, que dentro desse ambiente precisa rebolar para sobreviver, acredito que seja um cara justo.