Da cesta básica à engenharia na Oracle: como jovens de baixa renda conquistaram o 1º emprego

Por DANIELE MADUREIRA

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Aqui nós não damos o peixe, ensinamos a pescar". O provérbio, tão popular no Brasil, era desconhecido da jovem Arlete de Lira Sousa, 21, até o ano passado. Ela ouviu pela primeira vez quando entrou no Instituto Proa, uma Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) de São Paulo que procura capacitar jovens de baixa renda para o mercado de trabalho.

"Achei aquilo tão profundo, que tenho anotado até hoje", diz Arlete. "Eu queria muito pescar", afirma a jovem, que por duas vezes precisou abandonar os estudos e, até o começo do ano passado, antes de entrar no Proa, não via perspectivas de futuro profissional.

Existe um grupo no Brasil que não consegue comemorar a queda na taxa de desemprego no último ano - que recuou quatro pontos percentuais entre o terceiro trimestre de 2021 e o terceiro trimestre de 2022, para 8,7%. É o dos jovens entre 18 e 24 anos, cujo índice de desocupação permanece em dois dígitos, na faixa dos 19%, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Esta é uma das faixas etárias de maior rotatividade nas companhias: como não têm experiência e ganham pouco, os jovens são trocados com facilidade. Os mais pobres são especialmente prejudicados neste cenário: sem cursar uma faculdade, condição que os colocaria mais facilmente em programas de estágio ou trainee, eles ficam com as vagas que exigem menor qualificação, mais fáceis de serem descartadas.

Graças a iniciativas de Oscips como o Instituto Aliança, de Salvador, e o Instituto Proa, são oferecidos programas que vão além da capacitação profissional em áreas como tecnologia ou administração.

Estudante achou que teste para entrar em multinacional era 'trote'

Filha mais velha de um casal de piauienses que migrou para São Paulo, Arlete cresceu no Capão Redondo, bairro da periferia na zona sul da capital paulista. O pai era ajudante de pedreiro, e a mãe, diarista.

Arlete precisou deixar a escola pela primeira vez aos 13 anos, para cuidar das irmãs mais novas enquanto os pais trabalhavam. A segunda vez foi aos 15 anos, quando enfrentou um relacionamento abusivo com um jovem. Os pais tinham voltado para o Piauí.

"Dois anos depois, minha família retornou para São Paulo e voltei a morar com eles. Finalmente pude voltar para a escola, ainda mais ansiosa para aprender do que antes."

Após concluir o ensino médio, soube do curso de programação do Proa e decidiu se inscrever. Adorava tecnologia.

Três meses após iniciar o curso, recebeu uma ligação da multinacional de tecnologia Oracle, parceira do Proa. A pessoa sugeriu uma entrevista online com um executivo. Arlete mal acreditou quando, na conversa virtual, o executivo disse que tinha apreciado o seu currículo (já incrementado com a ajuda do Proa) e que gostaria que a jovem indicasse, por email, que cursos de nível superior em tecnologia ela gostaria de cursar.

Ir para a faculdade era uma realidade impensável para alguém que vivia com uma ajuda mensal de R$ 80 da prefeitura e recebia cesta básica de instituições religiosas. A essa altura, ela já estava casada, mas o marido, técnico em audiovisual, estava desempregado.

"Fiquei dois dias pensando se aquilo era verdade, se não era um trote. Por que ele iria gostar do meu currículo? E por que iria querer que eu indicasse faculdades?"

Na dúvida, Arlete apostou: não se limitou a indicar o nome dos cursos. Se a especialidade da Oracle era banco de dados, ela iria montar um banco de dados sobre os principais cursos do país na área de tecnologia e as melhores instituições de ensino no setor.

Colheu informações sobre Gestão de TI, Engenharia da Computação, Análise e Desenvolvimento de Sistemas e Ciência de Dados. Analisou a grade curricular de cada um, pesquisou as notas no MEC (Ministério da Educação), indicou as melhores instituições. Preparou um documento em Excel, elaborou um relatório, colocou o logotipo da Oracle e enviou.

Três dias depois, a resposta: "Gostei do que vi", disse o executivo. Na sequência, um email pediu que ela enviasse cópia dos seus documentos. E a proposta de contratação como engenheira de vendas, com um salário de R$ 5.000, veio em seguida. Arlete havia aprendido a pescar.

Hoje ela estuda Engenharia da Computação na Universidade São Judas Tadeu.

'Jovens com pais no mercado informal não pensam em faculdade'

"Nossa primeira tarefa é empoderar esses jovens, que muitas vezes chegam à idade adulta sem nunca ninguém ter acreditado neles, não acham que são capazes", diz Alini Dal Magro, diretora-executiva do Instituto Proa. "Depois tratamos do projeto de vida. Para a classe média, é natural sair do ensino médio e escolher uma profissão. Mas, para muitos deles, cujos pais trabalham na informalidade, o ambiente corporativo é uma novidade."

O Proa foi fundado há 15 anos por integrantes do mercado financeiro, como Susanna Lemann (mulher do empresário Jorge Paulo Lemann, o homem mais rico do país), Marcelo Barbará (da Lanx Capital) e Florian Bartunek (da Constellation Asset). Atende 15 mil jovens por ano, em 692 cidades de cinco estados (São Paulo, Rio, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Pernambuco). A partir de 2023, vai atender 25 mil jovens ao ano, incluindo Paraná e Minas Gerais.

A meta é empregar pelo menos 85% dos jovens em seis meses a partir da conclusão dos cursos em programação e gestão. Para entrar, o jovem precisa ter entre 17 e 22 anos, ter estudado em escola pública e até um salário mínimo de renda familiar (R$ 1.212). O instituto oferece transporte, alimentação, auxílio internet e uniforme. Tablets ou notebooks são cedidos em comodato.

Fundado há 20 anos, o Instituto Aliança já atendeu cerca de 800 mil jovens e crianças em programas de saúde e educação, além de famílias nas áreas de direitos humanos e geração de renda, em 13 estados do país e no Peru. Nos últimos dois anos, treinou 2.000 jovens em programas de empregabilidade, dos quais 1.600 foram contratados por meio de parcerias com empresas como Carrefour, Mercado Livre e Zurich Santander.

"Não basta dar o treinamento técnico para estes jovens, é preciso levar a eles as soft skills", diz a psicóloga Maria Adenil Vieira, fundadora do Instituto Aliança, referindo-se às habilidades comportamentais e subjetivas. "Muitos chegam tímidos, sem se comunicar direito. É preciso resgatar a sua autoconfiança, ajudá-los a superar seus medos e a traçar um projeto de futuro."

Nos programas de empregabilidade, são atendidos jovens de 18 a 24 anos, com ensino médio completo e renda familiar de até três salários mínimos (R$ 3.636). São oferecidos transporte, alimentação e tablet. Um projeto de formação em programação acaba de ser lançado em parceria com a Lenovo.

"O mercado de tecnologia está muito carente de bons profissionais, falta mão de obra qualificada. Queremos transformar a vida desses jovens, por meio de uma área chave para o desenvolvimento do país", diz Alice Damasceno, diretora de filantropia da Lenovo para a América Latina.

'Quiet quitting' questiona jeito 'adultocêntrico' de trabalhar, diz pesquisadora

Parceiro do Aliança, o grupo Carrefour é o maior empregador privado do Brasil, com 150 mil funcionários. "Hoje temos 4.000 jovens aprendizes e 41,5 mil colaboradores entre 18 e 25 anos", diz Marinildes Queiroz, gerente de cultura e desenvolvimento organizacional do Carrefour. "São eles que contribuem para manter o nosso ambiente de trabalho cada vez mais diverso e inclusivo."

Com 14 mil funcionários no país, o Mercado Livre tem 26% da equipe na faixa dos 18 aos 25 anos. No ano passado, o Redes para o Futuro, programa em parceria com o Aliança, formou 460 jovens nos estados onde estão os principais centros de distribuição da empresa.

"O nível de retenção é de 88%", diz Laura Motta, gerente de sustentabilidade do Mercado Livre no Brasil. "O curso acelera processos de contratação e traz mais diversidade, algo fundamental para uma empresa de tecnologia pautada pela inovação e inclusão."

Na opinião da pesquisadora Miriam Abramovay, coordenadora da Área de Juventude e Políticas Públicas da Flacso (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais), é preciso que as empresas se atentem ao que os jovens querem depois da pandemia.

"O movimento de quiet quitting [demissão silenciosa], em que os jovens contestam a produtividade a qualquer custo, está presente em todas as classes sociais", diz ela, socióloga e mestre em educação.

"Eles querem ter prazer no trabalho, e não viver para trabalhar, o que desafia a nossa sociedade adultocêntrica, na qual os jovens incomodam pelo jeito de ser, vestir ou falar", afirma. "Mas o dia em que a juventude não for mais contestadora, não sei o que será do mundo."