PT tenta convencer mercado de que buscará compensação para gastos da PEC
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Sob fortes críticas à PEC (proposta de emenda à Constituição) da Transição, o governo do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), tem pela frente o desafio de convencer o mercado de que adotará medidas para compensar os gastos extras e manter o endividamento sob controle.
A intenção de perseguir esses objetivos tem permeado as falas mais recentes de integrantes da equipe de transição, como o coordenador e vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin (PSB), e os ex-ministros Aloizio Mercadante e Fernando Haddad --este último cotado para assumir o Ministério da Fazenda no novo governo Lula.
Nos últimos dias, a equipe de transição intensificou esse discurso e passou a acenar com medidas como reversão de isenções tributárias, avaliação periódica de gastos e pente-fino em contratos, numa tentativa de atenuar a repercussão negativa da PEC e indicar compromisso com a responsabilidade fiscal. Mas a falta de detalhamento e de promessas concretas ainda gera desconfiança no mercado.
A cobrança por um plano de financiamento dos gastos ficou evidente na reação do mercado financeiro ao discurso de Haddad na sexta-feira (25) durante almoço promovido pela Febraban (Federação Brasileira dos Bancos). O ex-ministro falou em "choque de gestão", melhora na eficiência do gasto e reavaliação de despesas --mas, sem medidas palpáveis, gerou frustração.
A transição tem sido alertada por diferentes interlocutores, técnicos e políticos, sobre a necessidade de pensar medidas que amenizem o impacto da PEC da Transição na dívida pública. A previsão da fatura já chegou a R$ 198 bilhões, embora as discussões mais recentes apontem para uma negociação mais próxima de R$ 150 bilhões, como mostrou a Folha de S.Paulo.
O número é considerado "mais palatável", mas ainda assim demandaria esforços para neutralizar parte do rombo adicional nas contas, na avaliação de pessoas que participam das discussões.
O Orçamento de 2023 foi enviado com uma projeção de déficit de R$ 63,7 bilhões. Sempre que o governo gasta mais do que arrecada, essa diferença é bancada via emissão de títulos da dívida pública, com pagamento de juros --daí a preocupação com a ampliação excessiva do rombo.
Na terça-feira (22), o Ministério da Economia afirmou que prevê maiores receitas no ano que vem e reduziu a estimativa de déficit para R$ 40,4 bilhões, o equivalente a 0,4% do PIB (Produto Interno Bruto). Mas há na transição a percepção de que as receitas estão subestimadas e que, por isso, a projeção de déficit para 2023 pode se reduzir para algo em torno de R$ 20 bilhões (não considerando os efeitos da PEC).
Nesse cenário, a ampliação das despesas em algo próximo de R$ 150 bilhões elevaria o déficit público para um patamar em torno de 1,6% do PIB. Há a percepção, porém, de que o ideal seria manter o rombo abaixo de 1% do PIB, para afastar incertezas sobre a sustentabilidade das contas do país.
Auxiliares afirmam que a expansão de gastos concentrada em transferências de renda e investimentos incentiva o consumo e terá, consequentemente, um multiplicador favorável para a economia, ampliando o crescimento e a arrecadação de tributos. Dessa forma, uma parte do gasto adicional retornaria em forma de receitas.
Há o reconhecimento, porém, de que esse ganho é insuficiente e será necessário adotar outras medidas.
Uma possibilidade é obter a aprovação de um projeto de lei de autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que autoriza uma nova rodada de repatriação de recursos.
Em 2016, uma lei autorizou contribuintes que tinham bens ou dinheiro não declarados (mas de origem lícita) no exterior a regularizar a situação em condições vantajosas. A Receita Federal arrecadou quase R$ 47 bilhões com a medida, em valores da época.
O valor a ser obtido com a nova rodada ainda é incerto e pode ficar abaixo do verificado há seis anos, mas a iniciativa é considerada como possível fonte de recursos extras em 2023.
Outra alternativa é a revisão dos chamados gastos tributários, isenções concedidas pelo governo para contemplar setores e que devem drenar R$ 456 bilhões dos cofres públicos no ano que vem. O caminho é considerado difícil devido ao histórico de pressão de diferentes grupos contra a redução dos benefícios.
O novo governo ainda tem a opção de rever a desoneração de tributos federais sobre combustíveis, que hoje estão com a alíquota zerada. O custo da medida é R$ 52,9 bilhões, e uma reversão, ainda que parcial, ajudaria na recomposição das receitas da União.
A discussão, porém, é delicada porque a reoneração dos combustíveis poderia gerar um choque de preços. Em entrevista à Folha de S.Paulo, o economista Guilherme Mello, um dos coordenadores do grupo de economia na transição, disse que a desoneração pode ser mantida "num primeiro momento", com posterior reavaliação do cenário.
Economistas de fora do novo governo demonstram incômodo com a desconexão entre os debates. "A urgência do benefício social não é desculpa para não se discutir formas de financiamento", afirma o economista da ASA Investments, Jeferson Bittencourt, ex-secretário do Tesouro Nacional. Ele destaca que já existe uma série de diagnósticos feitos dentro e fora do governo. "A questão é incorporar isso no Orçamento."
Bittencourt elenca como exemplos estudos que indicam a possibilidade de revisão ou extinção de duas políticas: a desoneração da cesta básica e a isenção de Imposto de Renda para contribuintes com mais de 65 anos.
No caso da cesta básica, o governo deve abrir mão de R$ 34,8 bilhões em 2023 para isentar itens como arroz, carnes, queijos e produtos de higiene. "O problema é que não são só as pessoas pobres que compram arroz. E tem coisas nessa cesta básica que o pobre nem compra, como salmão e queijo brie", afirma.
O estudo feito em 2018 por técnicos do governo sugeria que direcionar metade do valor da desoneração da cesta para o Bolsa Família produzia a mesma redução da desigualdade. "Agora que já aumentamos a transferência de renda, fica faltando o fim da desoneração da cesta básica", afirma o ex-secretário.
Já a isenção de Imposto de Renda para contribuintes com mais de 65 anos deve drenar R$ 13 bilhões no ano que vem e, segundo Bittencourt, beneficia brasileiros de maior renda que sofrem a incidência do imposto. "E afinal, o imposto é sobre a renda ou sobre a idade?", questiona.
O economista Gabriel Leal de Barros, sócio e economista-chefe da Ryo Asset e ex-diretor da IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado, propõe uma combinação de reformas que poderia, segundo ele, economizar R$ 700 bilhões em uma década.
O cardápio inclui a aprovação de uma reforma administrativa válida apenas para novos servidores, com limitação de salários iniciais para categorias generalistas e progressão gradual na carreira; a fusão de políticas sociais como Auxílio Brasil, Auxílio Gás, Farmácia Popular, entre outras; e a focalização do abono salarial, espécie de 14º salário pago a trabalhadores com carteira assinada e remuneração de até dois salários mínimos.
Só em 2024, uma combinação que inclua esses três pontos poderia gerar uma economia de ao menos R$ 39,6 bilhões, estima Barros.
O economista Manoel Pires, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, defende a necessidade de planejamento fiscal de longo prazo, mas alerta para o que ele considera um "erro comum" de propostas recentes: a elaboração de cenários fiscais com receitas bem inferiores ao que se observa na prática.
Em artigo publicado no Boletim Macro de novembro, do Ibre/FGV, ele cita como exemplo a expectativa de crescimento na arrecadação com royalties, participações especiais, dividendos e tributos do setor de petróleo nos próximos anos. Essa receita ficou em 0,92% do PIB na média de 2011 a 2020, mas pode subir a 2,11% do PIB em 2022 a 2030, segundo cálculos do economista Bráulio Borges.
"Quando se leva em consideração o aumento da arrecadação, as reformas podem ser incrementais, e a solução do desafio fiscal se torna viável, compatibilizando sustentabilidade fiscal e a viabilidade do Orçamento com proteção aos mais vulneráveis", afirma Pires.