Carroceiros trabalham mais pelo lixo reciclado do que prefeituras
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - São cerca de 13h de uma terça-feira, nas proximidades do terminal de ônibus Amaral Gurgel, em Santa Cecília, região central de São Paulo. O carroceiro Joaquim Silva Santos, 63 anos, o "Bahia", como é conhecido, descansa sentado no meio-fio, debaixo do elevado Presidente João Goulart, o Minhocão, depois de almoçar no restaurante Bom Prato -programa do governo do estado de São Paulo que oferece refeições a R$ 1.
Logo ele vai sair para a segunda ronda do dia em busca de papelão, plástico, latinhas de alumínio e o que mais conseguir negociar em um ferro-velho do centro. "Não posso carregar muito peso, sou operado da hérnia", diz Bahia, que reclama do valor pago pelo material reciclado. "Depois da pandemia, tudo piorou: hoje pagam R$ 0,25 por um quilo de papelão, R$ 0,40 pelo quilo do ferro, R$ 0,40 pelo quilo da garrafa pet. O quilo da latinha é R$ 5", diz ele, que se emociona ao lembrar que passou a morar na rua também na pandemia.
Enquanto enxuga as lágrimas com um retalho de pano estampado, Bahia conta que não conseguiu se manter na pensão, "que antes cobrava R$ 12 por dia, depois passou para R$ 14 e agora está R$ 16". Também teria que desembolsar mais R$ 10 por noite para guardar a carroça em um estacionamento. "Desse jeito, não sobraria para eu comer", afirma o carroceiro, que ganha cerca de R$ 150 por semana.
"À noite, pego minha carroça, forro de papelão e me cubro com a manta. Não posso ficar com nenhuma moedinha, o que mais tem aqui é ladrão", diz ele. O forte cheiro de urina toma conta do ambiente, onde poças de água da chuva se acumulam perto da carroça, seu único bem, junto com a manta de lã, que durante o dia fica guardada no bar em frente à sua "moradia".
A situação econômica e as condições de trabalho de milhares de carroceiros como Bahia poderiam ser diferentes se estes agentes fossem remunerados pela coleta voluntária que realizam -e não apenas pela venda do material, cujo preço é instável e depende de uma cadeia formada por diversos atravessadores, entre a indústria e o catador.
Segundo dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), 75% dos ganhos totais do setor de reciclagem são destinados às indústrias, mas 90% do lixo reciclado passa pela mão de catadores, seja organizados em cooperativas de reciclagem, ou trabalhando isoladamente nas ruas e lixões.
Em São Paulo --a maior cidade do país, com 12,3 milhões de habitantes que a tornam também a maior geradora de lixo nacional--, duas concessionárias, a Ecourbis e Loga, receberam juntas cerca de R$ 10 bilhões para explorar por 20 anos, até outubro de 2024, o serviço de coleta seletiva.
Em 2020, as empresas recolheram 94,5 mil toneladas de lixo para reciclagem na cidade de São Paulo, segundo dados do SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento). No mesmo ano, um universo de 1.875 carroceiros e catadores (que são apenas uma parte do total que trabalha na capital) recolheram 161,2 mil toneladas, ou 71% a mais do que as empresas de coleta seletiva.
Com a diferença que os catadores não cobram pelo serviço, recebem apenas pela venda do que arrecadam. A maior parte deles (43%) ganha menos de R$ 1.000 por mês na capital.
Os dados pertencem à pesquisa Cataki 2022, realizada pela Plano CDE com catadores de São Paulo, Belo Horizonte e Rio a pedido do Pimp My Carroça, movimento social que busca valorizar o trabalho de carroceiros e catadores de material reciclável no país. Também na capital mineira, os catadores recolhem 59% a mais de material do que as empresas de coleta seletiva oficiais.
"Eles são numerosos, têm um horário de trabalho flexível e percorrem muito mais ruas do que as empresas contratadas para a coletiva seletiva", diz a doutora em ciência política Sonia Dias, especialista em gestão de resíduos sólidos pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
Ao lado da mestre em economia do desenvolvimento Mathilde Bouvier, Sônia assina o artigo "Catadores de materiais recicláveis no Brasil: um perfil estatístico", publicado pela rede global Wiego (Mulheres no Emprego Informal: Globalizando e Organizando). De acordo com o documento, o número estimado de catadores de materiais no Brasil era de 281.025 em 2019. Homens são a maioria (70%).
"O Brasil recicla 97% das latas e 67% do papelão. Mas apenas um quarto de todos os municípios do país possuem coletiva seletiva de lixo, que indica que essas altas taxas se devem ao trabalho dos catadores de materiais recicláveis", afirma Sônia.
Só 4% dos 381 kg de lixo gerados por brasileiro ao ano são reciclados O potencial de reciclagem é imenso. De acordo com o Panorama de Resíduos Sólidos no Brasil 2022, da Abrelpe (Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais), cada brasileiro produz, em média, 381 quilos de lixo por ano.
Mas apenas 4% disso é reciclado no Brasil, segundo a ISWA (Associação Internacional de Resíduos Sólidos, na sigla em inglês). Trata-se de um patamar muito menor que a média de outros países latino-americanos, como Chile e Argentina (16%), e infinitamente inferior ao de alguns países europeus, como a Alemanha (67%)
O índice de 4% do lixo reciclado é o mesmo observado na cidade de São Paulo. "No entanto mais de 30% do volume coletado por dia é passível de reciclagem, o que não acontece, pois a população descarta muito o material passível de reciclagem juntamente com resíduos comuns", informou à Folha a Prefeitura de São Paulo, em nota.
O poder municipal também informou que desenvolve programas de capacitação para catadores, como o SP Coopera, que atende cerca de 2 mil pessoas em situação de vulnerabilidade. Segundo a prefeitura, o programa vai formalizar 20 novas cooperativas de catadores na capital paulista, além de fortalecer as 30 que já estão instaladas.
"É um discurso recorrente do poder público: jogar para o cidadão a responsabilidade em reciclar. Mas sem oferecer estrutura para a coleta de material reciclado, nem incentivo para que os moradores separem o material", diz o grafiteiro e ativista Murano, fundador do Pimp My Carroça.
De acordo com a Prefeitura de São Paulo a "coleta domiciliar seletiva está presente nos 96 distritos do município, cobrindo cerca de 76% das vias". Mas a reportagem constatou que em diversas ruas do centro da capital o caminhão da reciclagem passa, mas não recolhe o lixo.
"Tente achar uma lixeira para material reciclável na avenida Paulista, um dos endereços mais ricos da cidade. Você não vai encontrar", diz Murano. "Muito menos na periferia."
Fundo bancado por empresas deve oferecer carroças elétricas em 2023 De acordo com a pesquisa Cataki 2022, a maioria dos catadores e catadoras nas cidades pesquisadas vive em vulnerabilidade econômica e social extrema. Estão em situação de rua, dormem em albergues, abrigos ou casas de acolhimento.
"A Prefeitura de São Paulo estimou a população de rua em 32 mil pessoas. Se a maior parte deste contingente fosse abarcado por uma política pública robusta de reciclagem, para trabalhar como carroceiro ou catador, a gente poderia resolver dois grandes problemas, um social e outro ambiental, de uma só vez", diz Murano, que fundou o Pimp My Carroça em 2012, depois de perceber que os carroceiros eram discriminados e alvo de preconceito pelo seu trabalho, em vez de serem valorizados.
Há cinco anos, o Pimp My Carroça lançou o Cataki, um aplicativo para conectar os geradores de resíduos -consumidores ou empresas- a carroceiros cadastrados. Os geradores combinam com os catadores um preço para que eles retirem o lixo a ser reciclado. O aplicativo conta com 300 mil downloads.
Agora, o Pimp My Carroça quer equipar os profissionais com carroças elétricas, que possam aliviar o peso carregado, que muitas vezes chega a 400 quilos. O formato é similar ao das tradicionais, mas os carroceiros não precisam fazer esforço para puxá-las, apenas as conduzem, como uma bicicleta elétrica.
Um fundo será criado em 2023 pelo movimento com o objetivo de arrecadar recursos para o programa "Carroças do Futuro". Cinco delas já estão em teste na cidade de São Paulo desde o ano passado, graças à parceria com o ICS (Instituto Clima e Sociedade).
A ideia é que empresas que precisem aumentar a logística reversa de suas embalagens participem do fundo e, com isso, consigam reduzir sua pegada de carbono.
"Estamos na etapa de formatação do fundo, definição das cotas, para ganhar escala e reduzir o custo de fabricação", diz Murano. "Mas já temos resultados animadores com as que estão em teste: houve um aumento de 200% na renda mensal dos catadores, porque eles não se cansam tanto e conseguem percorrer mais vias, e assim colher mais material", afirma.
Na opinião do grafiteiro, a carroça elétrica traz dignidade para um profissional que, muitas vezes, é xingado no trânsito, tem o seu instrumento de trabalho apreendido pelos agentes públicos e é alvo de preconceito. "Mas sem eles as cidades iriam sofrer muito mais com o lixo levado pelas enchentes e pela dengue, com a proliferação de mosquitos na água empoçada em latas e garrafas. Devemos a eles parte da saúde pública."