Mercedes-Benz espionou trabalhadores para a ditadura, mostram documentos
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A Mercedes-Benz do Brasil colaborou com a repressão da ditadura militar e espionou ativistas sindicais e funcionários nas décadas de 1970 e de 1980 na fábrica em São Bernardo do Campo, mostram documentos inéditos com o logotipo do Departamento de Ordem Política Social (Dops) que contêm a expressão "Fonte: Mercedes Benz".
De acordo com os registros, o setor de segurança da empresa recolheu e repassou informações sobre atividades sindicais e também pessoais dos metalúrgicos. Há ainda relatórios do Serviço de Informações da Aeronáutica (Cisa).
A Mercedes-Benz do Brasil não respondeu aos questionamentos da reportagem. Em nota, afirma que já foram conduzidas várias investigações internas sobre a possível colaboração da empresa com a ditadura no Brasil. "Até o momento não identificamos qualquer evidência de suporte da empresa para o regime militar", diz o texto. "Diante disso, não temos nada a comentar."
Nos arquivos confidenciais do Dops foram registrados planos dos sindicalistas e trabalhadores sobre greves, as principais reivindicações salariais e reclamações sobre condições de trabalho. A comunicação da empresa também revela nomes, cargos, seções de trabalho e endereços residenciais de seus próprios funcionários.
Um relatório sobre reunião realizada às 19h de 15 de janeiro de 1980, também confidencial e com a montadora apontada como a fonte, mostra que a espionagem realizada pela vigilância da Mercedes ocorria até mesmo dentro do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, onde atuava o atual presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
"A mesa estava composta dos líderes sindicais: Sr. Djalma [Bom, líder sindical e funcionário da Mercedes]; Sr. Cláudio Rosa; Sr. Juraci; Um representante de Santo André. Obs.: O Sr. Lula não estava presente", diz um trecho.
"Lembro que, numa reunião que estávamos fazendo no terceiro andar do sindicato com uns 60 trabalhadores, apareceu a informação de que havia um guarda da segurança da Mercedes lá dentro com a gente. Chegamos a visualizar ele, mas não queríamos problemas. Suspendi a reunião e, quando voltamos, esse segurança não estava mais lá", conta Djalma Bom.
O ex-líder sindical participou das greves em 1978, 1979 e 1980. Foi preso pelo Dops em abril de 1980 e ficou 31 dias detido. Foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional por incitação à greve.
A infiltração de seguranças da empresa nos encontros de trabalhadores era conhecida dos ativistas. Muitas vezes as lideranças indicavam data e horário errados de assembleias para despistar os espiões.
"A gente tinha duas reações quando descobria esses bate-paus. A primeiro era de medo. A outra era passar informação errada", afirma Moisés Seleges, atual presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, que ingressou no quadro de funcionários da Mercedes em 1984.
Também com o timbre "Fonte - Mercedes Benz", outro relatório, de 12 de março de 1980, reproduz falas de Lula em uma assembleia de trabalhadores em frente ao portão da Mercedes.
"Utilizando-se de um Volkswagen branco com alto falantes, revezavam-se no uso da palavra diversos diretores do sindicato, Juraci, Djalma e Lula, que convocaram o pessoal para não entrar na fábrica e ouvir a diretoria do sindicato. A tônica principal dos discursos foi a convocação dos mensalistas da MBB para a assembleia que será realizada no próximo domingo, às 10h, no Estádio de Vila Euclides, quando será discutida a campanha salarial de 1980", diz o texto.
A fala de Djalma Bom nessa assembleia também foi registrada: "Djalma fez críticas à MBB, por ter aberto os portões mais cedo, dizendo que era devido à presença do sindicato... Criticou também a política do governo de combate à inflação, chamando inclusive o ministro Delfim Neto de ladrão do povo e protetor das multinacionais. Criticou a MBB afirmando que ela está ficando cada vez mais rica, comprando áreas de terreno à sua volta e montando nova fábrica, sem contudo importar-se com seus empregados."
"Havia um funcionário da empresa que ficava gravando tudo através de uma janela do prédio que fica em frente ao pátio onde eram realizadas as assembleias", diz Moisés Seleges.
Os documentos confidenciais incluem relatório reservado do Departamento Regional de Polícia da Grande São Paulo (Degran) com informe enviado ao delegado-chefe do Dops, Romeu Tuma. Trata de pichação encontrada em banheiro da fábrica em São Bernardo do Campo.
Assinado por Firmino Pacheco Netto, o texto diz que, no banheiro dos mestres na "Firma Mercedes Benz do Brasil, foram encontrados os dizeres abaixo, escritos em giz numa das paredes: O banheiro é um lugar de meditação, portanto reflita. O regime atual do nosso governo comparado nas devidas proporções lembra muito a 'escravidão'. Trabalhadores sem lucros, somos subnutridos devido à inflação vigente no país. Mostremos a oposição, votando no MDB e fazendo greve".
Edilson Ferreira da Silva, que esteve na montadora entre 1974 e 2007 e participou ativamente das greves, relata que os seguranças da empresa "fechavam os armários dos operários e controlavam qualquer movimento. Até mesmo as idas ao banheiro".
Djalma Bom diz que o chefe do setor de segurança da empresa era o major do Exército Saturnino Franco. "Era um homem de estatura baixa e gordo. Mantinha rígida disciplina entre os seguranças, que vestiam farda azul, quepe e coturno".
Segundo Cláudio Rosa, sindicalista que trabalhou na empresa de 1975 a 1980, "a repressão era forte em todos os setores e com os dirigentes do sindicato. Sempre tinha o pessoal da segurança nos seguindo a uma certa distância em qualquer atividade nossa lá dentro".
Rosa foi detido duas vezes enquanto distribuía o jornal do sindicato na porta da fábrica, e levado a uma delegacia em São Bernardo do Campo. Em maio de 1980, após o falecimento de Eurídice Ferreira de Mello, a dona Lindu, mãe do presidente Lula, Rosa foi levado ao Dops na capital. Passou por interrogatório com Romeu Tuma. Acabou demitido em 30 de maio.
Entre os diretores da empresa estava outro militar, o general Adalberto de Queiroz. Era irmão do marechal Adhemar de Queiroz, ministro do Exército no fim do governo Castello Branco.
"O general Adalberto de Queiroz fazia a interlocução entre as direções da empresa e do sindicato. Já a função dos seguranças não era só de zelar pelo patrimônio da Mercedes. Era patrulhar o que os trabalhadores faziam. As fábricas no ABC eram verdadeiros quartéis", aponta Bom.
"O Queiroz era vice-presidente da Mercedes quando entrei lá em 1976. Foi indicado pelo governo militar", afirma Tarcísio Secoli, ex-diretor do Sindicato dos Metalúrgicos.
ALIANÇA DA VOLKSWAGEN COM MILITARES GEROU INDENIZAÇÃO DE R$ 36,3 MILHÕES A EX-FUNCIONÁRIOS
Em setembro de 2020, a Volkswagen assinou acordo extrajudicial assumindo sua colaboração e aliança com os militares na fábrica em São Bernardo do Campo durante a ditadura.
O acordo gerou uma indenização de R$ 36,3 milhões aos ex-funcionários presos, perseguidos, espionados e torturados dentro da própria empresa.
Ação judicial semelhante à impetrada contra a Volks pode ser proposta por representantes de trabalhadores da Mercedes-Benz.
A Comissão Nacional da Verdade (CNV) cita duas vezes a Mercedes em seu relatório final. Na primeira é relatada a prisão de operários da Volkswagen e da Mercedes, em 1972. "Foram presos no mesmo episódio mais de 20 metalúrgicos, a maioria da Volkswagen e o restante da Mercedes" e outras empresas do ABC.
A outra situação coloca a companhia no grupo empresarial que financiou a formação da Operação Bandeirante (Oban) em 1969, antecessora do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna), centro de detenção e tortura em São Paulo.
"O respeito e a preservação dos direitos humanos é ponto central para companhia", afirmou a assessoria da Mercedes na nota em que disse que não tinha comentários a fazer sobre a espionagem durante a ditadura.