Turquia, que manteve juros baixos em meio à inflação alta, sinaliza mudança de rumo

Por RAFAEL BALAGO

ISTAMBUL, TURQUIA, E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Olhar os cardápios de Istambul salvos no Google Maps é ver o passado. Há um ano, no restaurante House of Medusa, um prato com dois espetos de frango custava 115 liras turcas. Em janeiro, saía por 320. No começo deste mês, o preço era de 430 liras (R$ 87).

A economia turca vive um cenário conturbado desde 2021, marcado pela alta da inflação e pela queda do valor da lira. Para combater o problema, o presidente Recep Erdogan apostou em reduzir os juros, em vez de aumentá-los, como recomenda o receituário padrão dos economistas para domar a alta de preços.

Com juros mais altos, fica mais difícil financiar compras e obter empréstimos, o que acaba esfriando a economia e, consequentemente, contendo a alta de preços. O efeito colateral é que junto podem vir recessão e desemprego.

A inflação na Turquia ganhou tração há dois anos, justamente depois que o governo começou a baixar a taxa de juros em um momento em que os preços estavam em leve alta.

Em agosto de 2021, quando começou a baixa nos juros, a inflação estava na casa de 20%, considerando o acumulado de 12 meses. Um ano depois, em agosto de 2022, o indicador estava em 80%.

Mesmo assim, o governo Erdogan manteve a queda dos juros, que eram de 19% ao ano em agosto de 2021 e hoje está em 8,5%.

A inflação teve queda nos primeiros meses deste ano, e atualmente está na casa dos 40% anuais. A diminuição coincidiu com o período eleitoral. No fim de maio, Erdogan foi reeleito para mais um mandato, de cinco anos.

Uma das táticas para melhorar os números da economia no período foi vender reservas em moeda estrangeira para estabilizar o valor da lira, na faixa de um dólar para 20 liras.

No entanto, dias após o pleito, veio a desvalorização: a lira caiu para a faixa de 23 por dólar, um recorde negativo histórico.

Neste começo de novo mandato, iniciado em junho, o presidente fez mudanças no comando do Ministério das Finanças e no Banco Central: trouxe nomes com experiência em bancos estrangeiros, para tentar recuperar a credibilidade internacional, mas segue com mensagem dúbia.

"Nossos amigos não devem se enganar, como perguntar 'nosso presidente fará uma mudança séria na política de juros?'", disse Erdogan a jornalistas, na sexta (16).

"Mas, aceitamos que ele [ministro das Finanças] tomará medidas rapidamente, e de forma confortável com o banco central", acrescentou o presidente. O mandatário disse que a meta é trazer a inflação para taxas anuais de um dígito, algo não visto no país desde 2019.

As falas de Erdogan foram entendidas como um sinal de que o BC turco poderá subir os juros em sua próxima reunião mensal, na quinta (22).

Analistas apontam, no entanto, que o governo turco precisará de gestos mais firmes para recuperar a confiança estrangeira e voltar a atrair investimentos. Entre as críticas, estão a de que o governo fez muitas mudanças bruscas na condução econômica e na política nos últimos anos, o que gera temores de novas reviravoltas.

Em 2017, após um referendo, Erdogan teve seus poderes ampliados, inclusive para mudar regras comerciais e tributárias de forma unilateral. Houve também cerceamento da independência da Justiça.

Há dois anos, por exemplo, a Turquia deixou a Convenção de Istambul, um tratado contra a violência de gênero. "Isso sinalizou aos mercados internacionais que qualquer tratado pode ser anulado por decreto presidencial", disse Mehmet Gun, líder da ONG turca Better Justice Association, à agência Reuters.

"Há mais de uma década há uma captura do banco central pelo Executivo. Em muitos aspectos, é o presidente que define a política monetária", avalia Lívio Ribeiro, sócio da consultoria BRCG e pesquisador associado do FGV Ibre.

"Não é que eles estão combatendo a inflação com juros baixos. Eles não estão combatendo a inflação. Ponto. Eles tentam acomodar pressões inflacionárias para não fazer o que tem que ser feito", prossegue.

"Os preços das commodities, em especial o petróleo, subiram muito e isso afetou diretamente a inflação na Turquia. Não foi o único fator, mas foi importante. Foi um choque de oferta, e a taxa de juros não costuma produzir efeito sobre este tipo de inflação", pondera Pedro Raffy, professor de economia do Mackenzie.

Ribeiro aponta que a combinação de inflação alta e desvalorização da moeda acaba comprometendo as exportações. "Em termos reais, [neste cenário] a moeda possivelmente está se apreciando, o que significa que a competitividade externa do país está diminuindo. A inflação come o poder de compra da moeda e o poder de compatibilidade gerado pela depreciação da moeda. Anda-se em círculos."

Na última década, a lira perdeu 90% de seu valor frente ao dólar, sendo a maior parte disso nos últimos anos. No dia a dia, isso se reflete em mais inflação, especialmente em produtos importados, como a gasolina. O preço do litro nos postos era de 22 liras, cerca de um dólar, no começo de junho. "Era 18 liras há 15 dias", comenta Demir, morador de Istambul que pediu para ter o nome trocado, por ser crítico de Erdogan.

Apesar da inflação da gasolina, Istambul segue vibrante, com trânsito pesado em boa parte do dia. Muita gente sai para fazer compras nas ruas e shoppings e para se divertir em bares e restaurantes.

As taxas de juros mais baixas facilitam a obtenção de crédito, mas a inflação derrete o poder de compra. "Hoje é muito difícil comprar o primeiro carro. Geralmente só consegue um carro novo quem tem outro para dar como garantia ou pagamento", explica Demir.

"A situação da Turquia mostra muita semelhança com o que já aconteceu no Brasil e em outras economias emergentes. Há populismo por parte do governo, preocupação excessiva com o curto prazo, de não se desgastar com o aumento da taxa de juros e o corte dos gastos do governo. Mas, em algum momento isso vai se refletir em um custo maior para a sociedade", comenta Raffy, do Mackenzie.