Honorário 'elevadíssimo' para escritórios em caso da 123milhas pode prejudicar credores

Por PEDRO LOVISI

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais Alexandre Victor de Carvalho determinou que a 123milhas precisará pagar R$ 2,3 milhões à KPMG e ao escritório de advocacia Juliana Morais pela constatação prévia feita por eles no caso de recuperação judicial da empresa de viagens.

O valor é considerado altíssimo por especialistas e advogados envolvidos no processo e, segundo representantes dos credores, o desembolso pode afetar a capacidade de pagamento da companhia.

Geralmente, magistrados fixam valores na casa das dezenas de milhares como pagamento por esse serviço.

A constatação prévia é uma perícia feita antes de o juiz decidir se o processo de recuperação judicial tem ou não condições de seguir.

Nesse estágio, escritórios de advocacia e consultorias são nomeados pelo magistrado do caso para verificar, em até cinco dias, se a empresa está, de fato, em operação e se juntou toda a documentação exigida por lei.

Desde 2020, a constatação prévia é prevista em lei, ainda que o texto não obrigue os magistrados a determiná-la.

Até por isso, em casos de recuperação judicial de empresas muito grandes, a Justiça não costuma pedir a constatação prévia. Foi o caso, por exemplo, de Americanas, Light e Samarco ?o processo desta última também corre no TJ-MG.

Segundo especialistas, quando é notório que a empresa segue em operação, não há necessidade de exigir o instrumento.

No processo da 123milhas, a juíza Claudia Helena Batista descartou a perícia inicialmente, mas o Banco do Brasil ?maior credor da empresa? recorreu da decisão e ganhou em segunda instância.

Na decisão, o desembargador Alexandre Victor de Carvalho nomeou a KPMG e o escritório de advocacia Juliana Morais como responsáveis pela constatação prévia e fixou que eles deveriam ser remunerados em um valor de 0,1% da causa pelo serviço.

Como a causa é avaliada em R$ 2,3 bilhões, as empresas receberão juntas R$ 2,3 milhões.

"Tendo em vista o alto grau de complexidade do tema proposto e a extensão do trabalho desenvolvido, bem como o afinco e a presteza demonstrados pelos peritos no cumprimento do seu mister, além do significado jurídico e econômico da perícia para as partes, julgo adequado fixar seus honorários em 0,1% sobre o valor da causa", decidiu o magistrado em dezembro.

Procurado pela reportagem, ele não quis comentar.

No dia 9 de janeiro, após a 123milhas reservar apenas R$ 1 milhão de seu orçamento para o pagamento da constatação prévia, o desembargador voltou a determinar que a empresa pague os R$ 2,3 milhões.

"A constatação prévia tem de ser apresentada em cinco dias, imagina isso custar R$ 2 milhões, me parece muito. Isso diminui a capacidade da devedora de pagar seus credores, porque quanto mais custoso é o processo, menos dinheiro sobra para o pagamento dos credores", afirma Daniel Carnio, ex-juiz da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo.

Ele é considerado o precursor na determinação de perícias deste tipo.

Advogados que estão no processo também comentaram com a reportagem que os valores são elevados. Eles não quiseram se identificar.

Procurada, a 123milhas disse que não vai se manifestar, assim como o escritório Juliana Morais. Já a KPMG disse apenas que os honorários são fixados pelo juiz do caso de acordo com critérios da lei.

Como grandes casos de recuperação judicial não costumam ter constatação prévia, é difícil comparar valores pagos geralmente pela Justiça.

No entanto, há exemplos que podem ser avaliados: na recuperação judicial do Grupo Handz, dono da Gocil Serviços de Vigilância e Segurança, a Justiça fixou R$ 50 mil pela constatação prévia.

O passivo da empresa era de R$ 1,8 bilhão. Já na recuperação judicial do Grupo UTC, que tinha R$ 3,4 bilhões em dívidas, a Justiça fixou R$ 40 mil pela perícia.

O maior honorário encontrado pela reportagem para esse tipo de pagamento é no caso da Gramado Parks, no qual a Justiça fixou R$ 100 mil pelo serviço. O passivo da empresa era de R$ 1,6 bilhão.

Especialistas avaliam que a complexidade da realização da constatação prévia não necessariamente está ligada ao tamanho das dívidas da empresa em recuperação judicial.

"Isso vai depender da organização de contas da empresa, se ela tiver organizado corretamente já facilita a constatação", explica Paulo Cesar Azevedo, coordenador de tutela coletiva da Defensoria Pública de Minas Gerais.

Carvalho decidiu ainda que cada um dos três administradores judiciais da 123milhas ganharão 0,5% do valor da causa pelo serviço prestado em todo o processo.

Cada um deles ganhará R$ 11,5 milhões por um serviço muito mais complexo que pode durar anos, enquanto só a constatação prévia, feita geralmente em cinco dias, garantirá a dois deles R$ 2,3 milhões ?R$ 1,15 mi para cada.

"Os honorários dos administradores e peritos não entram na lista de pagamento dos credores e são feitos antecipadamente. Ou seja, primeiro se pagará os administradores, depois os créditos trabalhistas da empresa e, só depois, o que sobrar do patrimônio da 123milhas ficará com os milhares de consumidores lesados", explica Azevedo.

"[Os valores pagos no caso da 123milhas] são astronômicos. Embora seja um caso midiático, que envolve bilhões de reais, a gente acredita que esses valores estão muito acima do que o mercado pratica. O critério a ser aferido seria o valor de mercado desse serviço, não propriamente sobre o valor da causa", diz Francisco Demontiê, presidente da Associação Brasileira da Cidadania e do Consumidor do Estado de Mato Grosso do Sul.

A associação entrou com uma ação coletiva na Justiça contra a 123milhas e acompanha o caso de perto.

"Essa situação vai se refletir lá na frente para os consumidores, que são os grandes prejudicados com essa recuperação judicial e com todo o trabalho estapafúrdio que foi feito pela 123milhas ao longo do tempo", afirma.

O MP-MG (Ministério Público de Minas Gerais) ainda pode recorrer da decisão. No final de dezembro, o órgão recorreu da decisão de Carvalho que substituiu dois dos três administradores judiciais até então no caso pela KPMG e pelo escritório Juliana Morais.

O recurso, porém, não contesta os honorários pagos pela constatação prévia do caso. Procurado, o MP-MG disse que não se manifestará.