Mudar de área de atuação já acontece no setor público e pode atrair jovens
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Passar a vida toda desempenhando a mesma função no serviço público após ter passado num concurso é uma rotina que, cada vez mais, se distancia da realidade. Versatilidade de experiências e múltiplas habilidades passaram a ser requisitos para a resolução de problemas complexos no funcionalismo e, para isso, os governos têm se mexido para permitir trocas de área de atuação.
O MGI (Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos) prepara uma portaria ainda para este mês com diretrizes para a reestruturação de carreiras. Com isso, espera promover mais transversalidade e mobilidade. A ação faz parte de um plano a longo prazo de transformação de carreiras do Estado.
Ampliar as possibilidades dos cargos também é visto como vital para atrair e manter jovens de diferentes gerações no serviço público, apresentando a mobilidade como oportunidade de desenvolvimento profissional.
Para enfrentar esse desafio, há manifestações surgindo em direção das chamadas carreiras transversais, que permitem aos servidores circularem e contribuírem em diferentes áreas e setores. A flexibilização desses postos nas esferas municipais, estaduais e federais é uma tendência global, apontam especialistas.
"Muitos problemas difíceis que o governo enfrenta exigem conhecimentos diversificados. As carreiras transversais incentivam os funcionários a se moverem, tornando-os mais eficazes", afirmou Gabriela Lotta, professora de administração pública da FGV (Fundação Getulio Vargas).
Esta é a quarta reportagem da série Carreira Pública, em parceria com o Instituto República.org, que em cinco momentos discute a trajetória do servidor desde sua entrada no funcionalismo até a aposentadoria.
Hoje, segundo Gabriela, diversos desafios relacionados à carreira dificultam a mobilidade profissional. Os servidores enfrentam a necessidade de solicitar seções temporárias, muitas vezes associadas a cargos comissionados que podem ser perdidos com a mudança de governo.
Além disso, ela diz que a impossibilidade de acumular benefícios ao mudar de função torna a busca por novas oportunidades menos atrativa. Essas barreiras acabam desestimulando a movimentação em carreiras consideradas fixas, tornando o processo desafiador e pouco motivador.
"Mudar carreiras para promover a mobilidade é um processo complexo que requer mudanças legislativas e uma reestruturação significativa."
Já existem carreiras transversais no Brasil, como analistas do planejamento e orçamento, analistas técnicos de política social, especialista em política pública e gestão governamental, e outras em nível estadual.
Uma iniciativa do Rio Grande do Sul tem chamado atenção na administração pública com o Movimenta RS, programa criado em 2021 e que promove o deslocamento da força de trabalho, permitindo que os servidores migrem entre secretarias e áreas por meio de editais anuais, um a cada semestre.
Isso colabora para melhorar o desempenho desses profissionais e abre novas oportunidades no serviço público, segundo a secretária estadual de Planejamento, Governança e Gestão do Rio Grande do Sul, Danielle Calazans.
"O Movimenta RS permite que servidores circulem entre secretarias de acordo com as necessidades e demandas das áreas. O objetivo é mantê-los motivados e atender às demandas do estado, evitando que alguém fique à espera de uma próxima oportunidade."
A servidora Milene Figueiredo, 43, viveu essa experiência. Desde fevereiro de 2023, ela trabalhava como analista de projetos de políticas públicas da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, em Porto Alegre (RS), no departamento do Procon-RS.
Em maio, surgiu uma vaga em outra área, no posto do Tudo Fácil (similar ao Poupatempo), em Rio Grande, no interior do estado, onde mora sua família. Com sua experiência em gestão, Milene acreditava que era qualificada para o cargo e participou do processo seletivo para sua cidade natal, que aconteceu dentro Movimenta RS.
"Concomitantemente a essa possibilidade de crescimento, também tinha uma questão familiar, meu pai estava doente e precisava de mim aqui em Rio Grande. Embora a gente aceite trabalhar em qualquer lugar quando passamos no concurso público, no fundo sempre queremos voltar às nossas origens."
Ela foi transferida para o Tudo Fácil em outubro do ano passado, onde atualmente atua como fiscal de contratos governamentais e já faz planos para chegar a gerente-adjunto.
"A flexibilidade e os desafios dessa mudança rápida de cargos me motiva a buscar constantemente novos conhecimentos e experiências."
No entanto, há restrições salariais e burocráticas que dificultam a mobilidade. Um exemplo citado pelo secretário de Gestão de Pessoas do MGI, José Celso Cardoso Jr., é a urgência na crise humanitária vivida pelo povo indígena Yanomami, revelada há um ano.
Para Cardoso, mesmo com os esforços do governo para deslocar servidores de órgãos como Funai, Ibama e Polícia Federal para atender a essa demanda, é complexo alocar pessoas de um órgão para outro, ainda que por tempo determinado.
"[O caso dos Yanomami] É uma emergência, não dá para esperar um concurso ou uma requisição de um órgão. Tudo isso leva meses por causa da burocracia. Se já existisse esse princípio da mobilidade e da transversalidade no setor público, isso seria muito fácil e rápido."
Fernando de Souza Coelho, professor de administração pública da USP (Universidade de São Paulo) e integrante do Movimento Pessoas à Frente, aponta outra desvantagem: a falta de critérios objetivos para a alocação de servidores.
"Isso pode levar a movimentações baseadas em critérios subjetivos, como interesses pessoais, em vez de considerar o interesse público."
Um problema comum também é a competição por cargos com maiores remunerações, segundo Coelho, o professor da USP. A diferença salarial entre os níveis de governo pode levar a uma espécie de "leilão" em que os servidores buscam transferências para obter salários mais altos.
"Embora seja legítimo buscar um salário melhor, essa competição pode prejudicar a eficiência do serviço público e desequilibrar a força de trabalho em diferentes órgãos."
Coelho explicou que a movimentação de servidores pode causar desfalques em órgãos de origem, principalmente quando funcionários são cedidos para outros órgãos ou níveis de governo. "Pode impactar negativamente na prestação de serviços à população."
Para ele, esse desafio será superado após o desenvolvimento de uma política nacional abrangente de mobilidade de pessoal na administração pública.
É importante considerar a unificação de carreiras e cargos, segundo o especialista, tornando-os mais amplos e multifuncionais, para permitir uma maior flexibilidade na mobilidade ao longo da vida laboral dos servidores.
De acordo com Gabriela Lotta, para alcançar uma verdadeira mobilidade federativa e intersectorial, seria necessário repensar o desenho das carreiras e promover mudanças legislativas que incentivem a circulação dos servidores.
"Isso não só promoveria o desenvolvimento de novas competências, mas também enriqueceria o setor público com uma troca constante de ideias, redes e soluções."