Documentário da BBC sobre Bolsonaro aposta em didatismo e ignora Moro
WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) - Um "Trump dos trópicos" que assumiu o poder após uma campanha digital surpreendente, impulsionado por uma tentativa de homicídio, "com a missão de explorar a Amazônia a qualquer custo".
Assim o presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), é descrito no aguardado documentário "The Boys from Brazil: Rise of the Bolsonaros" (meninos do Brasil, a ascensão dos Bolsonaros), da rede britânica BBC, que estreia no próximo dia 5. A obra terá três episódios de uma hora cada um, mas uma versão com duas horas foi exibida nesta terça (30) nos Estados Unidos pela TV pública PBS.
Na versão, o documentário é uma espécie de Brasil para iniciantes, recuperando de forma didática e cronológica os momentos importantes da vida pública do atual presidente. Funciona melhor para o espectador estrangeiro do que para o brasileiro ?quem acompanha o noticiário, especialmente em tempos de eleição, tem frescos na memória os fatos elencados.
Apesar da preocupação didática, o filme ignora em absoluto a existência do ex-ministro da Justiça Sergio Moro, sem citar seu nome ou mostrar uma imagem sequer do magistrado, apesar de elencar a Operação Lava Jato como um dos fatores cruciais para a ascensão do presidente.
A obra intercala entrevistas com correspondentes estrangeiros no Brasil, jornalistas brasileiros, aliados e desafetos políticos, o filho senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e Steve Bannon, estrategista da ultradireita americana. Tudo isso em meio à profusão de imagens de arquivo disponíveis em redes sociais, plataformas que levaram Bolsonaro ao topo do poder, sustenta o documentário.
Cronológica como um verbete da Wikipédia, a obra retoma a infância no município de Eldorado e os primeiros anos de Exército, no período da ditadura ?em que, "se não fossem os militares, talvez hoje o Brasil fosse uma Cuba, uma Coreia do Norte", diz Flávio à produção, ao justificar a devoção do pai pelo período da repressão. O filme recupera uma entrevista de Bolsonaro em 1999, na qual afirmou que "através do voto você não vai mudar nada nesse país".
Após descrever o casamento com a primeira esposa, Rogéria, o nascimento dos três filhos mais velhos e a guinada política, baseada no ativismo salarial nos quartéis, o filme retrata a entrada de Bolsonaro no Congresso e mostra como o político defensor da família colocou o filho Carlos, então com 17 anos, para concorrer contra a mãe a uma vaga de vereador no Rio e tirar as chances da já ex-mulher de se eleger.
Para o documentário, um dos pontos de virada na carreira do hoje presidente se deu quando ele brigou com a deputada petista Maria do Rosário no Salão Verde do Congresso, em 2003. Na ocasião, ele xingou a parlamentar e disse: "Jamais estupraria você porque você não merece". Aí ele se tornou mais famoso nacionalmente, segundo a obra.
O filme sustenta que, após a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à Presidência, parte do eleitorado carecia de um representante do campo conservador e que Bolsonaro se fez conhecido ao se contrapor a avanços de direitos de minorias, sobretudo da causa LGBTQIA+.
Outro ponto de virada seria a Lava Jato, na qual o então deputado não foi implicado e que levaria, anos depois, o já ex-presidente Lula à prisão, tirando-o da corrida eleitoral de 2018. Ao tratar da campanha, há algumas incorreções temporais, como situar o início da propaganda de TV mais de um ano antes da eleição ?o horário eleitoral só começou no último dia de agosto, a 35 dias do primeiro turno.
O filme destaca especialmente a importância de Carlos Bolsonaro na criação da estratégia digital e mostra uma das mais emblemáticas fake news daquela campanha, a de que o adversário Fernando Haddad (PT) estaria distribuindo mamadeiras com um pênis de borracha para crianças, como parte de uma campanha contra a homofobia.
"Não tinha como competir com a direita nessa época em questão de redes sociais", diz no filme Camilla Azevedo, que trabalhou na campanha, ao falar sobre a rápida produção de memes nos bastidores.
Se há debate sobre o peso na eleição da facada de que o então candidato foi alvo em Juiz de Fora (MG), o pastor Silas Malafaia, um de seus principais aliados, crava: "Essa facada aí foi uma santa facada, eu falei para ele. Contribui para Bolsonaro, [ele] ficou como vítima".
O filme mostra que Bolsonaro não mudou seu estilo agressivo após chegar ao poder e relata o rompimento com aliados, como a então líder do governo Joice Hasselmann (que descreve a enxurrada de ameaças de que se tornou) e o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta (que desfila desenvoltura na língua inglesa ao narrar a obsessão de Bolsonaro pela cloroquina).
É a pandemia um dos pontos altos da peça, cuja edição americana parece acelerada ao final para fazer caber em duas as três horas do documentário da BBC. Joice afirma que tem "certeza que ele [Bolsonaro] enlouqueceu" ao lembrar das imagens do presidente exibindo caixas de cloroquina para as emas do Palácio da Alvorada.
O filme mostra então a escalada autoritária do presidente, com manifestações de caráter golpista e com questionamento ao sistema eleitoral, e termina com uma espécie de recado de Bannon. "Vocês estavam completamente errados sobre [o sucesso de] Trump, completamente errados sobre Bolsonaro. Coloque seu preconceito de lado, coloque os nomes pelos quais você os chama de lado e olhe para os fatos. Estamos só começando, não vai parar."