Putin recorre a Xi em seu pior momento desde a Guerra da Ucrânia

Por IGOR GIELOW

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Quando se encontrarem às margens de um fórum de segurança da Ásia bancado pela China no Uzbequistão, Vladimir Putin e Xi Jinping terão muito a falar. Se o farão na mesma língua, metaforicamente claro, é outra história.

O líder chinês faz sua reestreia no cenário internacional após a pandemia com a visita à mítica Samarcanda, não por acaso um centro da Rota da Seda, que Xi buscou reviver no seu governo na forma de um mastodôntico projeto multinacional de infraestrutura que até usa o nome da antiga via comercial entre China, Ásia e Europa.

Mas sua agenda mirando o encontro daqui pouco mais de um mês do Partido Comunista Chinês, que o irá reconduzir a um inédito terceiro mandato e entronizar ainda mais sua visão de mundo na Constituição, será ofuscada pelas sombras em torno do colega russo.

Putin está em seu pior momento político desde o começo da Guerra da Ucrânia, 20 dias após seu último encontro com Xi, em fevereiro, quando ambos selaram a entrada de Moscou na Guerra Fria 2.0 entre Pequim e Washington.

Um século se passou desde então. No mundo ideal de Xi, Putin teria matado a fatura na Ucrânia rapidamente e submetido a Otan liderada pelos EUA a um vexame histórico, dando cartas no jogo energético no qual ainda tem vários ases na manga.

Isso cristalizaria a posição chinesa de líder em um mundo polarizado, e ai de Taiwan. A ilha vista como rebelde por Xi está imersa em um contexto histórico diverso do da Ucrânia, mas o temor ocidental de que Pequim se sentiria tentada a forçar a anexação do território com um Putin triunfal não é de todo infundado.

O apoio russo na mais recente crise, com a provocação de Nancy Pelosi ao visitar a ilha, reforçou essa impressão.

Como mundos ideais não resistem ao calor da batalha, seis meses depois Putin se vê lidando com uma crise na região nordeste da Ucrânia. Por óbvio, o noticiário ocidental é "Kiev-dependente" e torcedor, mas parece evidente que os russos estão em apuros ao deixar a província de Kharkiv.

Se isso significa uma virada na maré da guerra, não é possível aferir agora. As posições de Moscou no leste e sul da Ucrânia parecem estáveis, e os relatos de que há uma fuga de autoridades russas da Crimeia anexada soam exagerados.

Isso dito, até pela opacidade do processo decisório russo, a impressão que transparece em conversas com analistas em Moscou é a do proverbial "barata-voa". Quando um aliado do Kremlin como o tchetcheno Ramzan Kadirov critica em termos duros a condução da guerra, algo está fora da ordem usual.

Nada disso significa que Putin esteja a um passo de ser derrubado por um golpe palaciano, como sonham propagandistas do outro lado. Até aqui pelo menos, ele parece ter endurecido ainda mais o controle sobre as estruturas políticas do país, embora qualquer assertiva aqui precise de cautela.

Não é casual, de toda forma, que esse líder enfraquecido esteja enfrentando justo agora uma segunda crise em uma de suas fronteiras estratégicas, no caso o sul do Cáucaso, na forma dos renovados combates entre Armênia e Azerbaijão.

Nesta quarta (14), o Ministério da Defesa em Ierevan alertou para o risco de uma guerra entre os dois países, dado o grau de violação do cessar-fogo entre eles na região armênia de Nagorno-Karabakh, uma herança do colapso soviético no meio do território azeri.

Em 2020, Baku venceu a segunda guerra sobre o lugar, mas não o reconquistou totalmente porque os russos, aliados históricos dos armênios, ainda que atravessados com a liderança política do país, mediaram uma trégua instável e enviaram forças de paz.

Os EUA até sugeriram que a crise foi instigada por Putin, visando um diversionismo para mostrar força, como fez ao mandar soldados para ajudar a autocracia do Cazaquistão em janeiro. Não parece muito factível.

O sujeito nem tão oculto aqui é a Turquia, fiadora do governo azeri, interessada em retomar a influência que já teve como Império Otomano em toda a região -uma rota histórica de invasões contra a Rússia, assim como suas fronteiras ocidentais na Ucrânia e na Belarus, ora um apêndice russo.

O autocrata turco, Recep Tayyip Erdogan, saiu fortalecido em 2020 no Cáucaso e, na Ucrânia, é apoiador do governo de Volodimir Zelenski enquanto mantém laços com Putin. Agora, parece testar sua ambiguidade, ao ver Baku atacar interesses armênios em meio à guerra europeia.

O Azerbaijão também manteve uma boa relação com Moscou, mas é igualmente fato que seu governo rico em gás natural está de olho nos mercados europeus que estão lentamente se fechando ao produto russo. Bom negócio para Baku, aumento de poder regional para Erdogan -que também irá encontrar-se com Putin em Samarcanda, onde também estará outro rei do jogo duplo, o premiê indiano Narendra Modi.

Aí entra Xi. O Kremlin voltou a balançar a aliança com Pequim antes do encontro, como que para lembrar o mundo de que não está sozinho. Fotos serão tiradas, e sinais de apoio serão emitidos pelo chinês. O que sairá em termos de ajuda efetiva é incógnito.

No casamento com a China, o dote de Moscou era seu poderio militar, não só nuclear, mas convencional. Economicamente, a Rússia é dez vezes menor do que o vizinho e parece fadada a ser tratada como uma província energética na relação.

Com a musculatura bélica russa desafiada e exposta como ineficaz, ainda que pontualmente, em tese Xi poderia tomar proveito da situação e firmar-se como macho alfa da relação. Pegaria bem internamente, mas um Putin muito desgastado não lhe serve no jogo que apresenta a Joe Biden e amigos do Ocidente.

Por outro lado, com uma crise econômica grave para resolver, o chinês ainda não pode prescindir da interdependência que mantém com EUA e aliados, o que explica sua posição moderada na crise da Ucrânia. É um xadrez de múltiplas camadas sobrepostas, e elas se encontrarão bem no meio da mítica Rota da Seda.