Comitê que investiga 6 de janeiro chega ao fim e deve pedir indiciamento de Trump
WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) - Depois de 18 meses, mais de mil testemunhas ouvidas e um milhão de páginas de documentos analisadas, o comitê que investiga na Câmara dos Representantes dos EUA a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021 deve ter sua última reunião nesta segunda-feira (19). Com uma cartada final: o pedido de indiciamento do ex-presidente Donald Trump.
A expectativa é de que o grupo divulgue na próxima quarta-feira (23) o relatório final das investigações da ataque ao Congresso, quando uma multidão de apoiadores de Trump tentou impedir à força a confirmação da vitória de Joe Biden nas eleições de 2020. A insurreição deixou cinco mortos.
O comitê foi constituído em 1º de julho de 2021 com nove deputados, incluindo dois republicanos, e funciona nos moldes de uma CPI (comissão parlamentar de inquérito) brasileira, com requisição de documentos e intimações para prestar depoimentos.
O grupo conseguiu revelações importantes, sobretudo em depoimentos do círculo próximo do ex-presidente, que chacoalharam a política americana, a ponto de a retrospectiva anual dos melhores programas da TV americana feita pelo jornal The New York Times incluir "audiências do comitê do 6 de janeiro".
"Não é um insulto chamar essa investigação sobre o ataque à democracia de programa de TV; esse era seu poder e sua realização. Utilizando edição hábil, estrutura de narrativa, gráficos, suspense, viralização nas redes sociais e, sim, um toque de carisma, os depoimentos transformaram um serviço público no programa do verão e no mais importante evento na TV do ano", disse James Poniewozik, crítico do jornal
Se havia a dúvida sobre até que ponto Trump acreditava mesmo nas alegações de fraude, os depoimentos mostraram que seus aliados o alertaram reiteradas vezes que a derrota nas urnas havia sido legítima, conforme testemunhou o ex-procurador-geral dos EUA William Barr. "Se ele realmente acredita nisso, ele perdeu o contato com a realidade", afirmou.
Além disso, o ex-presidente pressionou de autoridades locais ao Departamento de Justiça para reverter o resultado da eleição, segundo depoimentos. Seu advogado, John Eastman, teria pressionado o vice, Mike Pence, a não certificar a vitória de Biden mesmo sabendo que a medida era ilegal e que seria barrada na Suprema Corte. Irritados com a inação do vice, os radicais no 6 de janeiro gritavam "enforquem Mike Pence" enquanto invadiam o Congresso.
Também houve detalhes que entraram para o folclore dos dias finais de Trump, como Rudy Giuliani, ex-advogado do republicano e ex-prefeito de Nova York, aconselhando o então presidente a declarar vitória mesmo "visivelmente embriagado", segundo relato de Jason Miller, ex-assessor de Trump, à comissão.
Ou o relato de uma funcionária da chefia de gabinete do republicano, Cassidy Hutchinson, de que o então presidente teria ficado tão irritado ao ouvir que não houve fraude que jogou um prato de comida longe e manchou paredes na Casa Branca com ketchup. Segundo ela, Trump sabia que os manifestantes convocados por ele em 6 de janeiro carregavam todo tipo de armas.
A comissão já havia chamado a invasão do Capitólio de uma tentativa de golpe de Estado e deve votar agora o indiciamento do ex-presidente. Fontes ligadas ao comitê relataram ao portal americano Politico que o relatório final deve conter ao menos três acusações formais: insurreição, conspiração para fraudar o governo americano e obstrução de procedimento oficial.
A listagem, no entanto, é quase simbólica. É um pedido para que o Departamento de Justiça indicie Trump por esses crimes, com as provas levantadas e organizadas pelo comitê, mas o grupo em si não tem poder de conduzir um processo contra o ex-presidente na Justiça. Algo parecido com a CPI da pandemia no Senado brasileiro, que imputou a Jair Bolsonaro e seus ministros crimes contra a humanidade, entre outros, sem que ele eles tenham sido processados de fato por isso.
Nos EUA, Trump já é investigado pelo Departamento de Justiça por sua participação no 6 de janeiro. Mesmo sem o poder de tomar medidas legais, o relatório final do comitê aumenta a pressão e entrega uma investigação detalhada para as autoridades da Justiça americana, em um movimento sem precedentes do Congresso americano contra um ex-presidente.
Em comunicado por meio de seu porta-voz, Trump afirmou que o comitê é uma "mancha na história do país" e que "insulta a inteligência dos americanos e zomba da democracia".
Houve ainda muitas recusas de colaboração, a mais ruidosa a de Steve Bannon, ex-estrategista de Trump. Ele foi condenado a quatro anos de prisão por desacato ao ter se recusado a entregar documentos e a depor ao comitê. Segundo as investigações, Bannon falou com Trump pelo menos duas vezes no dia anterior ao ataque e participou de uma reunião de planejamento em um hotel em Washington. O painel chegou a exibir um vídeo no qual Bannon diz, em seu podcast, no dia 5 de janeiro de 2021, que "o inferno vai acontecer amanhã". Condenado, ele recorre em liberdade.
O próprio Trump também foi intimado, na reta final das apurações, e deveria ter prestado depoimento ao comitê em meados de novembro, porém se recusou e processou o grupo.
Mas o comitê também cobrou seu preço dos republicanos envolvidos. Liz Cheney, a mais vocal opositora de Trump dentro do partido, perdeu as eleições primárias em Wyoming e não pode nem se candidatar em novembro. Adam Kinzinger, de Illinois, o outro republicano no grupo, nem sequer buscou a reeleição.
O fim da comissão tem um motivo bem prático. Os democratas perderam o controle da Câmara nas eleições legislativas que ocorreram em novembro, e a partir de 3 de janeiro a Casa será comandada pelo Partido Republicano, o mesmo de Trump. E o provável novo presidente da Câmara, Kevin McCarthy, enviou uma carta ao comitê pedindo a preservação dos registros das apurações, indicando que pode constranger e trocar o sinal do comitê, mandando investigar os investigadores.