Guerra da Ucrânia fez do mundo um lugar mais perigoso em 2022

Por IGOR GIELOW

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Quando foi acordado por um telefonema dos pais às 6h do dia 24 de fevereiro, o jornalista moscovita Vladimir expressou todo o proverbial fatalismo russo. "A essa hora, só podia ser coisa ruim", conta. E era.

Seu xará ocupante do poder no Kremlin desde 9 de agosto de 1999 havia iniciado uma "operação militar especial" na Ucrânia, seja lá o que o termo significasse. "Era guerra, e nossa vida nunca mais seria a mesma", diz ele, que trabalha para um órgão estatal e pede para não ter o verdadeiro nome revelado.

Não que Vladimir não veja virtudes na ação de Putin, considerando que o Ocidente forçou os russos a agirem na Ucrânia ao não aceitar debater sua neutralidade. Pensam como ele 36% dos russos, segundo pesquisa do independente Centro Levada, realizada de 24 a 30 de novembro.

Vladimir, como personagens mais ilustres da tragédia como o presidente Joe Biden, achava que a guerra estaria resolvida em poucas semanas --em favor dos russos. Em março, o Levada apurou que 35% dos russos a viam se estender no máximo por seis meses. Hoje, passados dez meses de destruição e morte, esse índice caiu a 16%.

Com o fim do ano, algumas das facetas do maior conflito em território europeu desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-45), que eclipsou os outros 32 pelo mundo contados pelo Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (Londres), são passíveis de escrutínio.

O mito da Rússia invencível Por evidente, um país que tem prontas para uso 1.600 ogivas nucleares sempre será uma grande potência militar. Mas o ostensivo fracasso da uma guerra relâmpago que deixaria os ucranianos de joelhos, por falta de pessoal, inflexibilidade tática e erros grosseiros de logística, mostra que o temido poderio bélico reconstruído nas duas décadas de Putin no poder tem limites claros.

Obviamente, a resistência ucraniana pesou de forma decisiva, como a negativa do antes ridicularizado presidente Volodimir Zelenski em deixar o país pontua. Hoje, Kiev tem iniciativa.

Mas mais importante foram os erros de Moscou e a percepção de uma janela de oportunidade para o Ocidente, que passou a armar Kiev até os dentes --sempre de olho na linha vermelha estabelecida por Moscou para não ser envolvida na guerra em si, o que explica até aqui a ausência de fornecimento de aviação de combate.

O mito da Rússia derrotada O problema da leitura dos erros russos é incorrer na ideia de que Putin já perdeu a guerra. Como nunca é claro acerca de seus objetivos, praticamente tudo é intuído no Ocidente acerca de seus desígnios. Os básicos são claros: neutralizar a Ucrânia, impedindo sua adesão ao arcabouço de estruturas rivais, como a Otan (aliança militar) e a União Europeia (clube político).

Chegar a algo parecido com isso é outra história. Como ocupar a Ucrânia é inviável, até porque o Ocidente transformou suas forças terrestres em uma das mais capazes em toda a Europa, Putin ainda tem meios de amputar partes do vizinho --ou engolir as que já considera suas, anexadas em setembro.

Não deverá ser com a atual campanha aérea contra a infraestrutura energética para quebrar o espírito ucraniano. O resultado pode ser o contrário, como os britânicos sob a Blitz nazista ou os norte-vietnamitas sob a chuva de fogo dos B-52s demonstraram. Mas ela pode ganhar tempo para o treino e emprego dos 320 mil reservistas convocados em outubro, talvez com algum reforço da aliada relutante Belarus.

Por outro lado, apesar de tudo, os russos seguem apoiando Putin (79% de aprovação, diz o Levada) e as Forças Armadas (74%). A elite, com elementos em guerra aberta entre si e claramente insatisfeita com sanções, não produziu ao fim um golpe de Estado como muitos políticos ocidentais sonhavam.

Em resumo, o jogo ainda está aberto e as vítimas de lado a lado vão sendo contadas. Os EUA estimam em 100 mil baixas (mortos e feridos) para cada beligerante, mais talvez 40 mil civis. Moscou e Kiev dão números baixos e inconfiáveis. Essa verdade só será conhecida bem depois que o último míssil cair.

Negociações de paz Nem Moscou, nem Kiev estão verdadeiramente prontas para a paz porque seus termos são inconciliáveis a este ponto. Os EUA parecem ter recuado um pouco da ofensiva para que Zelenski abrisse a possibilidade de negociar com Putin, temendo serem vistos como maus aliados --se é que é possível dizer isso depois de despejarem mais de US$ 20 bilhões em armas para os ucranianos.

Mas há bases possíveis para conversa. Muito criticado por sugerir em maio que a paz deveria ser construída sobre as fronteiras estabelecidas antes da guerra, o que implicaria a cessão definitiva da Crimeia anexada em 2014 e de parte do leste russófono para Moscou, o papa da diplomacia americana Henry Kissinger avançou no tema em um artigo recente para a revista britânica The Spectator.

Ele sugere que a integração de Kiev com a Otan é inevitável, ainda que não precise ser formal. "A alternativa da neutralidade perdeu o sentido, em especial depois que a Suécia e a Finlândia aderiram à Otan", escreveu.

A essa concessão por Moscou, ele retoma os temas de maio, reforçando que não se deve "degradar o papel histórico da Rússia". "A busca pela paz e pela ordem tem dois componentes que são às vezes tratados como contraditórios: a procura por elementos de segurança e o requisito de atos de reconciliação. Se não obtivermos os dois, não conseguiremos nenhum deles", disse.

Novo normal? A previsão de que a Rússia se curvaria às sanções ocidentais não se concretizou. O país está em dificuldades e o longo prazo é desafiador, mas seu PIB não irá cair na casa dos dois dígitos e a indústria energética com que financia boa parte de seu orçamento conseguiu sobreviver.

Moscou tornou-se um cemitério de vitrines ocidentais, é fato, mas a vida segue com relativa normalidade, mesmo entre aqueles que não compram a versão edulcorada da realidade da mídia estatal. A China e a Índia têm garantido a sobrevivência econômica do Kremlin ao comprar oceanos de petróleo e gás com desconto, mas substituir a Europa ora fechada não é processo simples ou rápido.

O grande teste será este inverno no hemisfério Norte e as capacidades de governos de subsidiar a indústria e da população de tolerar a alta dos preços energéticos. Diferentemente dos ucranianos, britânicos e franceses não têm sua terra invadida, e o continente tem pontos de fissura política. Nos EUA, os custos de uma guerra distante já são objeto de discussão.

Isso dito, até aqui demonstrou unidade e passou a gastar mais: segundo o Instituto para Economia Mundial de Kiel (Alemanha), em novembro pela primeira vez a UE ultrapassou os EUA em ajuda global aos ucranianos (52% a 48%).

O fator China Se Putin busca ganhar tempo e pressionar a Europa sob a neve, fator central para os desenvolvimentos do primeiro semestre de 2023 é a posição de seu maior aliado, a China. Xi Jinping joga um jogo duplo: aprofunda a cooperação militar com Moscou e promete amizade eterna, mas expressa publicamente dúvidas sobre o rumo da guerra e tem buscado reaproximar-se de Biden.

Para o chinês, nenhuma ruptura com os EUA é desejável agora, num momento em que está entrando no limbo do abandono de sua política de Covid zero para enfrentar dificuldades econômicas e evitar revoltas populares.

Ao mesmo tempo, ele se beneficia dos negócios energéticos com Moscou. É um xadrez complexo, que envolve outros atores regionais como a Índia e até mesmo o Brasil, e há dúvidas se a dinâmica no campo de batalha não acelerará a política.

A Terceira Guerra Mundial Um dos aspectos mais aterradores de ver uma potência nuclear invadir um país armado de forma convencional em pleno século 21 é a possibilidade de uma escalada atômica. O uso frequente da carta nuclear por Putin ao longo de toda a crise, inclusive antes de mandar seus soldados para o vizinho, reanimou o fantasma da Terceira Guerra Mundial.

Como o próprio russo já disse, seria estupidez política e militar usar uma bomba atômica contra a Ucrânia, não menos pelo enorme risco de isso atrair uma resposta da Otan e um conflito catastrófico. Mas o espectro segue no ar, como já alertou a ONU e Putin adora relembrar, e se há uma certeza após quase um ano de guerra, é de que o mundo se tornou um lugar ainda mais perigoso.