Lula veta envio de munição do Brasil para tanques na Ucrânia

Por IGOR GIELOW

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) negou um pedido feito pelo governo da Alemanha para que o Brasil fornecesse munição de tanques de guerra que seria repassada por Berlim à Ucrânia em guerra com a Rússia.

A decisão ocorreu na sexta passada (20), na reunião do petista com os chefes das Forças Armadas e o ministro da Defesa, José Múcio. Foi a véspera da demissão do comandante do Exército, Júlio Cesar de Arruda.

O general havia levado a proposta alemã para a discussão, mostrando que o esforço do governo do primeiro-ministro Olaf Scholz para montar um pacote de ajuda na área de blindados pesados para Kiev é mais amplo do que vem sendo divulgado.

Após semanas de pressão dos Estados Unidos e de aliados ocidentais, Scholz decidiu nesta semana enviar um contingente de 14 tanques Leopard-2 aos ucranianos e, mais importante, liberou a licença de reexportação dos armamentos para quem quiser doá-los a Kiev --12 países na Europa operam cerca de 2.300 blindados do tipo.

Segundo militares e políticos com conhecimento do episódio, Arruda afirmou que o Brasil embolsaria cerca de R$ 25 milhões por um lote de munição estocada para seus tanques Leopard-1, o modelo que antecedeu o tanque desejado pelo governo de Volodimir Zelenski. Ele levantou a hipótese de exigir de Berlim que não enviasse o produto para Kiev, o que não faria sentido.

Lula disse não, argumentando que não valia a pena provocar os russos. O Brasil, apesar de ter condenado a invasão de 24 de fevereiro de 2022 na ONU, mantém uma posição de neutralidade por motivos econômicos, recusando participar de sanções contra a Rússia de Vladimir Putin.

O pedido alemão por munição de Leopard-1 sugere que Berlim está disposta a ofertar o antigo modelo, do qual a fabricante Rheinmetall dispõe de 88 unidades em estoque. Elas precisariam ser preparadas para uso, o que o presidente da empresa diz que pode levar o ano todo, mas o principal problema hoje é a sua munição.

O Leopard-1 só é operado por Brasil (261 unidades, segundo o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, de Londres), Chile (30), Grécia (500) e Turquia (397) --os dois últimos, membros da Otan (aliança militar ocidental) como a Alemanha. O tanque tem um canhão com calibre de padrão antigo, de 105 mm, enquanto o Leopard-2 usa munição de 120 mm.

Não foi a primeira tratativa do gênero. No ano passado, a Alemanha sondou extraoficialmente o governo para comprar munição do blindado com canhões antiaéreos Gepard que tirou da aposentadoria para enviar à Ucrânia, sem sucesso. O Brasil ainda opera o modelo.

A reportagem procurou o Itamaraty, o Ministério da Defesa e o Exército, operador das munições, para comentar o caso e especificar a natureza do pedido alemão --se foi oficial ou uma sondagem. Nenhum dos órgãos respondeu até aqui.

O Brasil não está sozinho na sua negativa. Os EUA pediram ao novo governo colombiano de Gustavo Petro para que o país cedesse antigos helicópteros soviéticos Mi-8 e Mi-17 para Kiev, que opera os modelos.

Levaram um não, segundo Petro relatou nesta semana, assim como o aliado americano Israel disse que não iria liberar um lote de mísseis antiaéreos Hawk de seus estoques. No caso de Tel Aviv, foi dada a desculpa que o material é velho e inconfiável, mas pesou o fato de que o governo tem uma relação próxima, embora nem sempre amigável, com Moscou.

Fertilizantes motivam o Brasil Já a motivação central da posição de Lula tem nome: fertilizantes, vitais para o agronegócio do país e que têm de ser majoritariamente importados. A Rússia é, há anos, a líder desse mercado --de 2018 a 2022, vendeu em média 22% do produto que é consumido pelos brasileiros.

No ano passado, com os embargos ocidentais, seguradoras e transportadoras marítimas pararam de fazer negócio com embarques russos, e rotas alternativas foram criadas até um acordo para a exportação de grãos da Ucrânia durante a guerra em tese reabrir o mercado para Moscou --a Rússia reclama, contudo, de que o Ocidente não faz sua parte.

O resultado foi um salto nos preços internacionais, visível no Brasil: apesar de ter importado 8 milhões de toneladas de fertilizantes de Moscou, 1,3 milhão de toneladas a menos do que em 2021, o lucro dos russos cresceu 58,8% no período, com um recorde de US$ 5,6 bilhões vendidos para brasileiros.

Isso puxou o resultado da balança comercial com a Rússia, segundo dados da Secretaria de Comércio Exterior, em favor do Kremlin. O Brasil comprou ao todo 37% a mais de Moscou em 2022, em comparação com 2021, totalizando US$ 7,8 bilhões.

Os russos estão em sexto no ranking de países que mais venderam para o Brasil. Em relação a exportações, compraram meros US$ 1,9 bilhão de produtos brasileiros.

A Rússia, apesar da pressão das sanções, conseguiu navegar a crise em 2022. Vendendo petróleo e gás com desconto, a partir do gradual fechamento do mercado prioritário da Europa, viu China e Índia multiplicarem o comércio com o país.

A Ucrânia, é claro, condena essa relação, acusando os países de financiar a agressão russa. No caso brasileiro, Zelenski chegou a queixar-se da posição do país, em particular a do então mandatário Jair Bolsonaro (PL).

Ainda presidente, Bolsonaro fez uma polêmica visita à Rússia na semana que antecedeu o conflito, e deu diversas declarações se recusando a tomar partido claro --o que, de resto, é a posição histórica do Itamaraty.

Lula, em entrevistas, também foi na mesma linha de condenar a guerra sem posicionar-se contra Putin. Isso lhe rendeu uma passagem na lista do governo ucraniano de divulgadores de propaganda russa, mas seu nome acabou retirado.

Os russos agradeceram a posição brasileira, e Putin chegou a dizer à Folha de S.Paulo antes do segundo turno em outubro que trabalharia muito bem tanto com o petista quanto com o adversário por fim derrotado.