Guerra da Ucrânia e China puxam gastos militares no mundo
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A Guerra da Ucrânia e as tensões entre EUA e China na Ásia colocaram o mundo em rota de aumento dos gastos militares, com ao menos 20 países anunciando incrementos nos orçamentos de defesa em 2022.
Com efeito, ao longo do ano passado, Rússia, Eurásia e Ásia tiveram aumentos reais, acima da inflação, no dispêndio bélico. Trata-se de um dos paradoxos da guerra: o aumento da inflação global devido à majoração dos preços de energia e de alimentos levou a uma ligeira queda de 2,1% em relação a 2021 no gasto militar aferido pelo IISS (sigla inglesa para Instituto Internacional de Estudos Estratégicos).
A organização, baseada em Londres, divulgou nesta quarta (15) o "Balanço Militar", a bíblia de inventários militares e gastos do setor no mundo. Em termos nominais, descontando a inflação, 2022 já registrou aumento de despesas bélicas: US$ 1,97 trilhão (R$ 10,2 trilhões), ante US$ 1,84 trilhão (R$ 9,6 trilhões).
Em outras palavras, o mundo gasta aproximadamente o PIB (Produto Interno Bruto) do Brasil para se armar. Como seria previsível, os Estados Unidos mantiveram a ponta isolada no ranking, que de resto teve alterações importantes decorrentes da nova realidade geopolítica.
Washington gastou US$ 767 bilhões em 2022 ?e o governo Joe Biden prevê ainda mais neste ano. A principal rival dos EUA, a China, gastou US$ 242 bilhões, mas o IISS aponta que o valor escamoteia o custo mais barato de produção do país, o que deve levar a cifra para cerca de US$ 360 bilhões.
Entre os protagonistas da Guerra Fria 2.0, contudo, há diferenças importantes. Em termos reais, os EUA lideram entre os que reduziram gastos, com 58% dos US$ 66 bilhões a menos aplicados. Já os chineses têm a maior fatia do aumento de US$ 30 bilhões entre quem abriu o bolso, 15,6%. Em porcentagem do PIB, houve queda de 3,3% para 3,06% dos americanos e estabilidade, de 1,2%, na China.
O ritmo de guerra ativa da Rússia levou o país a acelerar o gasto, deixando a quinta posição de 2021 para a terceira, pulando de US$ 62,2 bilhões para US$ 87,9 bilhões, ou 4,1% do PIB. Novamente, o gasto verdadeiro equivale a cerca de US$ 192 bilhões, na métrica do IISS.
Como disse a pesquisadora sênior de economia de defesa do IISS, Fenella McGerty, os números russos são bastante nebulosos, como seria de se esperar numa guerra. O aumento do gasto em proporção do PIB pode ser ainda mais brutal, de até 8% na prática.
Apesar dessas mudanças, a vantagem americana ainda é gritante em termos gerais. O país quase empata com os gastos dos próximos 14 colocados no ranking (US$ 850 bilhões) e soma mais do que o dobro do gasto do resto do mundo (US$ 360 bilhões).
O restante do ranking se manteve relativamente estável nas primeiras posições. O Brasil subiu de 16º para 15º, com um gasto aferido de US$ 23 bilhões. Ainda assim, o dado brasileiro embute distorções, dado que o país inclui no seu gasto militar o pagamento de aposentadorias e pensões, que são quase o dobro do que se aplica na ativa ?ao todo, despesas com pessoal consomem mais de 70% do orçamento.
Dois rivais secundários no rearranjo político do mundo se destacam com aumento de gastos. O Japão, que reforçou sua ligação com os EUA e anunciou no ano passado que vai dobrar seu investimento em defesa, já aparece em 2022 com um incremento real de 12% no setor.
Do lado russo, o Irã também figura entre os que mais aumentaram a despesa real, 8,5%. Em termos gerais, o bloco Rússia-Eurásia (5,8%), a Europa (1%) e a Ásia (0,8%) puxaram os aumentos. Ainda não é visível o impacto dos anúncios de outros aumentos. No caso da Alemanha, houve frustração: a ministra da Defesa caiu após não colocar em marcha o plano de triplicar o gasto no ano passado, com um fundo emergencial.
Segundo o presidente do IISS, John Chipman, a guerra e as tensões entre Estados Unidos e China são os motores do cenário daqui para frente, apesar de o impacto inflacionário escamotear os números.
Ele fez uma avaliação bastante negativa do desempenho russo no conflito, repassando os erros de Vladimir Putin em sua invasão até aqui. "Há dúvidas sobre a coesão do comando", afirmou, citando o emprego do grupo mercenário Wagner nas renovadas ofensivas no leste da Ucrânia.
Para ele, a modernização das forças russas "fracassou no seu primeiro teste". Alguns números de perdas de equipamento, um termômetro central nas análises do IISS, indicam isso. Segundo o novo "Balanço Militar", os russos perderam quase metade de sua frota de tanques modernos na guerra, caindo de 3.387 unidades para cerca de 1.800.
O problema da avaliação foi reforçado pelo editor da publicação, James Hackett: "Muito difícil fazer isso com os dados disponíveis, em especial sobre blindados e artilharia".
Assim, Moscou tem empregado mais material de reserva, o qual tem em abundância se não em qualidade: modelos de tanques soviéticos antigos, como o T-64, um estoque que era estimado em 10 mil unidades. "Eles parecem buscar inspiração na batalha de Kursk, em 1944", disse o especialista em forças terrestres Ben Barry, citando o uso de camadas de defesa e de ataque blindadas e pouca consideração pelas baixas.
A estimativa, de todo modo, está em linha com observações feitas, por exemplo, pelo Oryx, site que monitora informações públicas e georreferenciadas de destruição de equipamento militar. A perda de cerca de 10% da frota de aviões de combate é outro ponto negativo para Moscou apontado pelo IISS.
Do lado ucraniano, o IISS estimou em 953 os tanques à disposição de Kiev, aproximadamente o número pré-guerra, mas contando com talvez 500 unidades que foram abandonadas pelos russos, o que não garante seu emprego. O instituto mapeou ainda a transição de equipamentos da era soviética para o padrão da Otan (aliança militar do Ocidente), particularmente no emprego de artilharia.
O relatório mostra um mundo em rearmamento. Aponta o desenvolvimento de armas, como o bombardeiro B-21 dos EUA, e a colocação em operação de outras, como os mísseis hipersônicos russos Tsirkon.
Em termos globais, houve aumento no contingente de militares, que passaram de 19,6 milhões para 20,8 milhões de 2021 para 2022. Lideram esse ranking específico os chineses, com 2,03 milhões, seguidos por indianos (1,5 milhão), americanos (1,4 milhão), norte-coreanos (1,3 milhão) e russos (1,1 milhão). O Brasil, de acordo com o IISS, manteve-se estável, com 367 mil fardados.