Entenda a crise e a situação política da Venezuela hoje
BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) - A Venezuela voltou ao centro das atenções ao participar do encontro de líderes de países da América do Sul, em Brasília, nesta terça-feira (30). Enquanto Luiz Inácio Lula da Silva (PT) diz que as acusações de falta de democracia na nação caribenha são parte de uma "narrativa", outros presidentes reagem.
Em menos de 20 anos, o país passou por períodos de esperança, riqueza, declínio e, depois, pela maior crise humanitária de sua história. Agora, vê índices melhorarem, mas segue mergulhada em desigualdade e denúncias de violações de direitos humanos enquanto espera as próximas eleições, previstas para 2024.
Entenda a crise e a situação atual da população governada há 25 anos pelo regime iniciado por Hugo Chávez, sendo a última década dominada pelo seu então vice, o hoje ditador Nicolás Maduro.
CRISE ECONÔMICA
A crise econômica na Venezuela começou a dar as caras em 2013, atingiu seu ápice em 2018 e até hoje deixa a grande maioria da população sem acesso a produtos básicos. A principal raiz do problema, de acordo com analistas, está na grande dependência do petróleo.
Chávez assumiu o país em 1998 com altos índices de pobreza e conseguiu revertê-los durante a década de 2000, favorecido pelo preço da commodity no mercado mundial. Mas o valor começou a despencar no final de seu governo, o que derrubou as receitas e iniciou a deterioração do país.
Paulo Velasco, coautor do livro "A Venezuela e o Chavismo em Perspectiva" (Appris, 2022), cita também a péssima gestão pública durante o regime: "O governo se acostumou com a época de vacas gordas e não soube se adequar", diz. Com grande parte da economia estatizada, Maduro manteve gastos muito elevados e controlou o câmbio. O bolívar foi derretendo, a inflação, explodindo, e o PIB, encolhendo.
Com a queda abrupta das exportações ?também pelo sucateamento da estatal de petróleo PDVSA?, reduziram-se as importações, o que causou crise de abastecimento de itens como alimentos e remédios. As sanções impostas a partir de 2017, principalmente pelos EUA, agravaram uma situação que já era ruim.
POBREZA E DESIGUALDADE
Nesse contexto, o índice de pobreza multidimensional (que não considera apenas a renda, mas as privações da população) cresceu ininterruptamente entre 2014 e 2021, de 39% para 65%. No ano passado, caiu pela primeira vez, para 50%, segundo a última Pesquisa Nacional sobre Condições de Vida do país.
A desigualdade, porém, não para de aumentar, de acordo com o mesmo levantamento: os 10% mais ricos ganham 70 vezes mais do que os 10% mais pobres. Isso faz a Venezuela ser o país mais desigual das Américas em termos de renda, com índice comparado aos de Namíbia, Moçambique e Angola.
O desabastecimento não é mais um problema, e sim o acesso às mercadorias. "Há ampla oferta de bens de todos os tipos, mas o cidadão comum não tem acesso a eles. São para 10% a 15% da população", diz Omar Lugo, jornalista e analista no país, que destaca também os apagões de energia diários.
Algumas medidas do governo de Maduro para atenuar a crise liberalizaram a economia em certa medida e melhoraram a atividade do setor privado. A inflação já está longe do seu pico, em 2018, quando chegou a mais de 100.000% anuais, mas continua entre as piores do mundo, ultrapassando 400% anuais.
AUTORITARISMO
O autoritarismo começou ainda no governo de Chávez, principalmente depois que ele sofreu uma tentativa de golpe em 2002. Em 2009, o líder fez uma emenda na Constituição para permitir reeleições ilimitadas. Falava em ficar no poder até 2030, enquanto perseguia opositores e minava a liberdade de imprensa.
Mas foi depois que ele morreu, devido a um câncer, em 2013, que seu vice, Maduro, passou a mostrar a face mais autoritária do regime, tentando se manter no poder com uma taxa de popularidade que nunca se aproximou da registrada pelo antecessor e sendo tachado por setores chavistas como "neoliberal".
Em 2017, por exemplo, após perder o controle do Parlamento, o ditador criou uma Assembleia Constituinte com amplos poderes para neutralizar a vitória da oposição. O chavismo também domina o Tribunal Supremo de Justiça, instância máxima do Judiciário. Ele se reelegeu em 2018 sob eleições muito questionadas e sem o acompanhamento de observadores internacionais.
A ocorrência de uma série de crimes contra a humanidade também foi denunciada. Em abril, a Corte Penal Internacional divulgou um informe reunindo 1.746 denúncias. Antes, em março, a ONU já havia publicado relatório com 122 casos desde 2014. Espancamentos, uso de descargas elétricas e asfixia são algumas das práticas relatadas por opositores da ditadura. "Há censura e autocensura. Não existem meios de imprensa tradicionais e programas de rádio e TV dedicados a informação e opinião. Os meios digitais são os que permanecem de pé no jornalismo independente, mas o acesso à internet é um dos piores do mundo", afirma o jornalista Omar Lugo, editor do site "El Estímulo".
CRISE MIGRATÓRIA
As crises política e econômica causaram também uma crise migratória sem precedentes, em especial a partir de 2018. No final de 2021, a agência da ONU para refugiados registrava 6,1 milhões de venezuelanos refugiados ou migrantes ?número próximo ao da Ucrânia, em guerra com a Rússia há mais de um ano.
Isso provocou uma profunda mudança demográfica na Venezuela. Se em 2015 existiam cerca de 31 milhões de habitantes, em 2022 passaram a ser 28 milhões. Além das migrações, cresceram as mortes e caíram os nascimentos, o que causou um encolhimento significativo dos jovens na pirâmide etária.
Agora, a maior onda parece ter passado, e parte dos venezuelanos começa a voltar: pela primeira vez em 20 anos, o saldo de quem entra e sai das fronteiras ficou positivo em 2022, segundo o Banco Mundial.
"A pandemia também interrompeu o fluxo, que não voltou com a força anterior. Os venezuelanos com quem conversei querem voltar não por apoiarem Maduro, mas por sentirem falta da família e por estarem desesperançosos", diz Velasco. "Os que queriam pressionar uma mudança de fora já não acreditam mais."