Fala de Lula sobre Holocausto transborda diplomacia e vira espinho político doméstico
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - A crise desencadeada pela comparação feita pelo presidente Lula (PT) da ofensiva militar de Israel na Faixa de Gaza com o Holocausto nazista transbordou a área de política externa do governo.
Em uma semana, Lula viu o tema ser arrastado para o debate político em Brasília: as declarações viraram munição para um pedido de impeachment da oposição, foram usadas por bolsonaristas para tentar impulsionar uma manifestação em defesa do ex-presidente em São Paulo e ainda renderam uma cobrança pública de retratação por parte do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
Era previsto que a guerra Israel-Hamas e o número crescente de vítimas em Gaza figurassem entre os temas centrais da viagem de Lula ao Egito e à Etiópia neste mês. Também era esperado que o presidente falasse em tom de condenação aos atos de Tel Aviv; primeiro porque não seriam falas inéditas, mas também porque Lula discursaria na sede da Liga Árabe e se encontraria com o ditador egípcio, Abdel Fattah al-Sisi.
No entanto, a declaração controversa de Lula continua tendo impacto sobre várias camadas do governo quase uma semana depois. Ela veio nos últimos minutos dos compromissos oficiais de Lula na África, no domingo (18), em resposta à última pergunta da entrevista coletiva que o petista concedeu em Adis Abeba, capital da Etiópia, pouco antes de ele embarcar de volta para o Brasil.
"Sabe, o que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino, não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus", afirmou Lula na ocasião.
A declaração deu o pretexto para o governo de Binyamin Netanyahu lançar uma série de críticas e ataques contra o brasileiro. O discurso de Lula já vinha sendo crítico a Israel --depois de condenar os ataques do Hamas, por exemplo, o presidente classificou de "insana" a resposta militar de Tel Aviv--, mas para Bibi, como é conhecido o premiê israelense, a comparação com o Holocausto "cruzou a linha vermelha".
Lula foi então declarado "persona non grata" por Israel --na prática, um rótulo que cria uma série de embaraços diplomáticos, embora nenhuma sanção política ou jurídica. O brasileiro também tornou-se alvo de uma série de declarações e publicações nas redes sociais de Netanyahu e de seu chanceler, Israel Katz. Ele ainda viu o embaixador do Brasil em Tel Aviv, Frederico Meyer, ser chamado para dar explicações no Yad Vashem, o mais importante memorial sobre o Holocausto, num ato encarado pelo governo brasileiro como armado para constranger o diplomata.
A resposta de Brasília foi diplomática --o governo convocou o embaixador de Israel no Brasil, Daniel Zonshine, para dar explicações e depois chamou Meyer para voltar ao país--, mas manteve-se ainda na manga a possibilidade de expulsar Zonshine, um gesto diplomático drástico que sinalizaria uma ruptura mais grave.
Somou-se à crise o fato de ela se desenrolar enquanto ocorria no Rio de Janeiro a cúpula de chanceleres do G20 --a primeira sob a presidência rotativa do Brasil. Isso abriu brecha para que a polêmica fala de Lula fosse rebatida por autoridades de diferentes países. O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, por exemplo, expressou pessoalmente ao brasileiro sua discordância da comparação.
Na política doméstica, a comparação também causou dores de cabeça para Lula e sua equipe. A oposição protocolou um pedido de impeachment, que deve permanecer na gaveta do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), mas que ajudou a arranhar a imagem do governo.
A fala ainda provocou ruído com os evangélicos em um ano importante para o governo devido às eleições municipais. Na corrida pela prefeitura de São Paulo, o atual prefeito da capital, Ricardo Nunes (MDB), defendeu Israel. Aliado de Lula, o pré-candidato Guilherme Boulos (PSOL) apressou-se em tentar se distanciar da polêmica: disse em entrevista à BandNews que não era comentarista das falas de Lula e que não estava se candidatando para prefeito de Tel Aviv.
A questão também foi usada por Jair Bolsonaro (PL) e seus apoiadores para tentar inflar a manifestação convocada para a Avenida Paulista neste domingo (25). O ato acontece no momento em que o ex-mandatário vê fechar o cerco da Polícia Federal, na investigação que apura uma articulação golpista para impedir a posse de Lula.
Numa das manifestações mais contundentes sobre a fala do Holocausto, o senador Rodrigo Pacheco pediu uma retratação por parte de Lula. A fala, que muitos apontam ter sido influenciada pelo senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), que é judeu, chamou a atenção por ser uma repreensão pública à manifestação do presidente da República --de quem Pacheco é aliado.
A temperatura da crise parecia diminuir, mas o próprio Lula voltou a tocar no assunto durante um evento no Rio de Janeiro na sexta-feira (23), embora não tenha repetido a comparação com o Holocausto. "São milhares de crianças mortas, milhares desaparecidas. E não está morrendo soldado, estão morrendo mulheres e crianças dentro de hospital. Se isso não é genocídio, eu não sei o que é genocídio", completou.
"Não tentem interpretar a entrevista que dei na Etiópia, leiam a entrevista. Leia a entrevista em vez de ficar me julgando pelo que disse o primeiro-ministro de Israel. O que está acontecendo em Israel é um genocídio", reiterou o presidente.