Entidade pioneira no apoio a trabalhadores negros no Brasil completa 190 anos
SALVADOR, BA (FOLHAPRESS) - Um sobrado no largo do Cruzeiro, coração do Pelourinho, em Salvador, abriga memórias e tesouros de uma Bahia negra do século 19 que está fora da maior parte dos livros de história.
Era em seu salão nobre, com piso em madeira e paredes onde florescem imagens de margaridas amarelas, que trabalhadores negros e livres se reuniam vestindo seus melhores ternos. Ali, deliberavam sobre o apoio a outros trabalhadores negros na Sociedade Protetora dos Desvalidos.
A entidade acaba de completar 190 anos em plena atividade com o desafio manter o trabalho social e legado de combate ao racismo daquela que é primeira associação civil formada exclusivamente por negros no Brasil.
Tudo começou em 16 de setembro de 1832, quando 19 homens negros liderados por Manoel Victor Serra se reuniram em uma capela na Freguesia de Santo Antônio Além do Carmo, em Salvador, para criar a Irmandade de Nossa Senhora da Soledade Amparo dos Desvalidos.
"A opção por criar uma irmandade foi uma estratégia para fugir do raio de ação dos opressores. Até porque os objetivos dessa instituição não eram religiosos, eram sociais", afirma Lígia Margarida Gomes, presidente da Assembleia Geral da Sociedade Protetora dos Desvalidos.
A associação admitia como sócios efetivos "cidadãos brasileiros de cor preta" e funcionava como uma espécie de Previdência: dava apoio financeiro aos associados em casos de doença, invalidez, velhice, além de conceder pensões a viúvas de seus sócios. Também apoiava órfãos e abrigou cursos de alfabetização para alunos negros.
O caráter civil da entidade se concretizou duas décadas depois da fundação. Após um racha entre os seus membros em 1851 foi criada SPD (Sociedade Protetora dos Desvalidos), instituição que dez anos depois foi regulamentada pelo governo da Província da Bahia.
Entre os membros da entidade estavam trabalhadores que exerciam ofícios como de pedreiro, carpinteiro, marceneiro e alfaiate. Parte deles tinha boa condição financeira e educacional, como demonstram testamentos e atas de reuniões da entidade.
A SPD se financiava com mensalidades dos associados e recursos arrecadados com o aluguel de imóveis de sua propriedade, muitos deles deixados como herança por seus membros.
Mesmo formada exclusivamente por negros, a instituição conseguiu ter uma inserção relevante em uma Salvador escravista de meados do século 19.
"Eles não estavam à margem, estavam profundamente inseridos. A SPD adotou uma estratégia de seguir o fluxo e construir acordos. Ela conseguiu se sustentar por tanto tempo porque não atuava na divergência, no conflito", avalia o historiador Lucas Ribeiro Campos, doutorando em história social na Universidade Federal da Bahia.
Em dissertação que se debruçou sobre a Sociedade Protetora dos Desvalidos entre 1861 e 1894, Campos encontrou elementos que apontam para uma forte atuação política na entidade, que construiu laços com parlamentares, presidentes de província e conseguiu inclusive auxílio financeiro do governo provincial.
A Sociedade Protetora dos Desvalidos teve entre seus membros mais destacados Manuel Querino, professor de desenho, escritor e intelectual que mais tarde se tornaria conselheiro municipal, cargo equivalente ao de vereador, e também engajaria na luta abolicionista.
Querino ingressa na instituição ainda jovem, aos 26 anos, e se torna uma de seus principais entusiastas. Tempos depois, afasta-se da entidade, mas por motivos ainda não muito claros.
Para Lucas Ribeiro Campos, uma das possibilidades é que o afastamento tenha acontecido por divergências políticas, já que Querino era republicano, enquanto a Sociedade Protetora dos Desvalidos era monarquista, e assim permaneceu até mesmo após a Proclamação da República.
Outro membro destacado foi Marcolino José Dias, escravizado que conseguiu a liberdade em 1848. Popular na cidade de Salvador, era conhecido por frequentar em candomblés e associações abolicionistas. Lutou na Guerra do Paraguai, de onde voltou tido como herói, e militava no Partido Liberal.
Ele tentou se associar pela primeira vez em 1865, mas teve o pedido negado. Para Lucas Ribeiro Campos, a condição de liberto de Marcolino pode não ter sido bem vista pelos membros da entidade, que em sua face pública buscava se desvincular da escravidão.
"Existem esses paradoxos e contradições na história da SPD, que estava inserida em uma sociedade escravista. Mas isso não anula a importância de uma instituição fundada na ideia de comunidade e solidariedade entre negros."
Atualmente, a Sociedade Protetora dos Desvalidos não recebe recursos públicos e se mantém com recursos de aluguéis de imóveis. Com o que arrecadada, mantém a tradição de pensões, mas com um valor simbólico, e financia projetos de apoio a estudantes quilombolas, ao empreendedorismo negro, além de um projeto voltado para meninas negras da periferia de Salvador.
A questão de gênero, inclusive, ganhou protagonismo na entidade, que virou a página de uma história masculina e hoje tem paridade em sua diretoria e há três gestões é liderada por mulheres.
Seu acervo, com farta documentação dos séculos 19 e 20, é um de seus bens mais valiosos. A diretoria está em busca de parcerias para garantir a manutenção e a restauração de parte destes documentos.
O resgate da memória também passa pela produção de um documentário sobre a Sociedade Protetora dos Desvalidos dirigido pelo cineasta Antonio Olavo que deve ser concluído em 2023.
Lígia Margarida Gomes, presidente da entidade, diz que a meta da entidade ganhe maior protagonismo no debate político, cultural e racial no país, com foco no combate ao racismo e promoção da igualdade.
"Eu costumo dizer que os desvalidos de ontem, que eram homens e mulheres escravizadas, hoje é o povo negro que vive nas periferias da cidade. Estamos focados no resgate dessas questões sociais e em contribuir na promoção dos direitos do povo negro."