Prefeitura de SP deve relançar edital para programa de reconhecimento facial após questionamentos
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O programa de reconhecimento facial Smart Sampa, que tem a previsão instalar 20 mil câmeras com o capacidade de identificar pessoas a partir da estrutura de seus corpos e de monitorar redes sociais, deve ser relançado assim que a prefeitura de São Paulo responder a questionamentos feitos no TCM (Tribunal de Contas do Município).
"Se o tribunal de contas liberar, eu solto amanhã", disse o prefeito Ricardo Nunes (MDB) à Folha de S.Paulo na última sexta (13). "Hoje, por coincidência, o secretário de Governo, Edson Aparecido, tem uma reunião no TCM para discutir e ajustar aquilo que acham necessário", afirmou.
Com pregão marcado para o dia 5 de dezembro do ano passado, a licitação foi suspensa pela gestão Nunes para a modificação de pontos criticados. À época, as observações apontaram viés racista na tecnologia e em termos que constavam na versão original do texto, depois suprimidos, como a identificação de "vadiagem" e "cor", este último substituído por "estrutura corporal".
Outra questão era a própria forma de contratar um sistema de inteligência para reconhecimento facial e a integração de serviços públicos, o que exigiria o compartilhamento de dados de cidadãos.
Especialistas ouvidos pela Folha de S.Paulo à época disseram que a consulta às comunidades potencialmente impactadas pelo compartilhamento de dados deveria ter sido feita antes que se lançasse um edital para construir esse tipo de capacidade técnica, que previa investimentos de R$ 70 milhões.
Segundo o TCM, há seis representações contra o projeto no tribunal, sob a relatoria do conselheiro Roberto Braguim. Uma delas foi anunciada pela deputada federal Erika Hilton (PSOL), então vereadora de São Paulo, que tratava do risco de que a tecnologia do Smart Sampa se juntasse a outras violências praticadas contra pessoas negras.
A prefeitura foi chamada para se posicionar, com prazo de 15 dias, em três manifestações. O restante ainda está sob análise do tribunal, por serem questões de tecnologia da informação mais complexas, o que poderia alongar o prazo das devolutivas.
Parte dos documentos diz que o Smart Sampa não se trata de um bem ou serviço comum, e não poderia ser contratado por meio de pregão eletrônico.
A falta de delimitação do objeto também aparece nas representações, além de um potencial direcionamento da concorrência para empresas que já prestem serviços baseadas na lei europeia de proteção de dados, sem definir que critérios seriam necessários para fazê-lo.
Outro ponto é a falta de especificação de limites ou critérios para a subcontratação, pela empresa ou consórcio que vencesse a licitação, de serviços ou ferramentas fornecidos por outras empresas.
Outro ponto é relativo à LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), já que cidadãos monitorados ou com suas informações utilizadas por motivos diferentes não teriam meios de consentir com cada finalidade. Isso se choca com a aposta do prefeito, que é integrar bases de informações das pessoas para a segurança e a oferta de serviços públicos de transporte, saúde, assistência social e iluminação, entre outros, no que chamou de "o grande cérebro da cidade".
Nem a administração municipal, por meio da pasta de Segurança Urbana, e nem o tribunal disseram quais delas já foram respondidas.
Na sexta, Nunes reiterou que o projeto respeita as diretrizes da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) e voltou a destacar a realização de audiências públicas, além de afirmar que a participação popular também tem acontecido por meio dos debates na Câmara Municipal de São Paulo e das ações dos órgãos de controle, como o Ministério Público.
"Os trechos criticados foram mal interpretados, e aquela questão [os termos de vadiagem e cor] já havia sido retirada, eu havia pedido para alterar e não muda o contexto da importância do programa", afirmou. "A cidade de São Paulo tem muitas ferramentas de participação popular. Quem falar o contrário não mora em São Paulo ou está mal-intencionado".
O cadastro unificado de cidadãos é o sonho de gestores públicos, diz Rafael Zanatta, diretor da associação Data Privacy Brasil de Pesquisa. No entanto, usar informações coletadas pela Fazenda para um serviço de Saúde, o que se chamada interoperabilidade, exige justificativas do poder público e a participação da comunidade afetada por essas decisões.
Ou seja, a governança que delibera sobre o uso desses dados não pode ser restrita ao governo.
"O que o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu? Que é inconstitucional ter um sistema de governança do uso secundário de dados para a garantia de interoperabilidade, sendo que o governo é uma parte interessada nisso. Como você vai ter um controle externo se você, governo, decide o uso? Tem que ter as outras partes interessadas", afirma.
A decisão citada por ele foi tomada em setembro do ano passado pelo Supremo, que declarou inconstitucional o formato do Comitê Central de Governança de Dados. A regra foi atualizada pelo decreto 11.266, de 2022, que determinou a criação de duas vagas para instituições da sociedade civil que atuam no tema.
"Isso diz para o gestor 'legal, mas eficiência não é valor absoluto, porque está lidando com a vida de pessoas e a comunidade política, então o sistema de gestão tem que ser inclusivo", afirma Zanatta.
Já no Comitê de Gestão e Transparência descrito na nota da secretaria municipal de Segurança Urbana enviada à reportagem, não há menção à sociedade civil. "O Conselho será integrado por diversos órgãos, inclusive pela Controladoria Geral do Município (PGM), e terá como objetivo garantir o cumprimento da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e o uso das informações apenas para fins legais", diz o texto.