Desnutrição é ainda mais preocupante em crianças e idosos, segundo médicos

Por STEFHANIE PIOVEZAN

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em seus 22 anos de carreira, o médico Marco Túlio Ribeiro nunca se deparou com casos de desnutrição grave e sempre recorreu a imagens de livros para falar do assunto. Isso mudou na última semana, com a divulgação da situação de emergência no território Yanomami.

"No Brasil, não víamos mais casos assim. Pensar que as pessoas chegaram a esse ponto por uma negligência do governo federal, que poderiam estar em outra situação e que mortes poderiam ter sido evitadas gerou um sentimento de muita revolta, indignação e tristeza", afirma Ribeiro, professor de medicina da Universidade Federal do Ceará e vice-presidente da SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade).

A entidade tem um grupo de trabalho de saúde indígena com profissionais que atendem os povos originários, mas Ribeiro afirma que eles não tinham dimensão da gravidade do quadro. "Sabíamos que existia uma crise de desinvestimento do governo federal em relação aos DSEIs [Distritos Sanitários Especiais Indígenas], seja por falta de medicamentos ou de investimento na estrutura, como carros para transportar as pessoas, mas não tínhamos noção do nível de desassistência", afirma.

Ribeiro diz que as imagens e os relatos dos últimos dias indicam que a população que vive no DSEI Yanomami, região que abrange o noroeste de Roraima e o norte do Amazonas, está sem acesso à alimentação adequada há muito tempo, o que leva a uma sequência de problemas.

Quando a desnutrição persiste, o corpo inicia um processo para tentar obter nutrientes no próprio organismo. Primeiro, consome a reserva de gordura. Depois, passa a consumir os próprios músculos.

"Aí está o grande problema", diz o médico Durval Ribas Filho, presidente da Abran (Associação Brasileira de Nutrologia). "Músculo é proteína e a redução nos níveis de proteína interfere diretamente no sistema imunológico, resultando em infecções."

O processo leva a uma redução da força e ao funcionamento inadequado do corpo, que vai tentando ao máximo preservar as funções vitais. O organismo prioriza a respiração, os batimentos cardíacos e a atuação dos rins e do fígado, mas, se a fome permanece, eles também começam a falhar.

Em casos mais iniciais, são comuns quadros de diarreia --as "bactérias do bem" presentes no intestino deixam de ser alimentadas e predominam as bactérias prejudiciais--, anemia, hipotireoidismo e hipovitaminose, que prejudicam o crescimento, o desenvolvimento intelectual e a visão.

A situação, afirmam os médicos, é ainda mais preocupante em crianças e idosos, naturalmente mais suscetíveis a infecções, e as sequelas variam de acordo com o início do tratamento. Quanto antes ele for iniciado, menores as chances de efeitos definitivos.

Mas também não é possível reverter o quadro de imediato, adiantam os especialistas. Quando a desnutrição é grave, a pessoa tem dificuldade de se alimentar.

"O organismo não está metabolicamente preparado, ou seja, não tem produção de insulina para metabolizar carboidratos e de enzimas suficientes para quebrar as moléculas de gordura e as proteínas", diz Ribas Filho.

Por isso, é comum promover o aumento gradual de calorias ingeridas com pequenas refeições várias vezes por dia --são até 12 momentos, afirma o nutrólogo- e, aos poucos, ir ampliando a oferta e reduzindo a frequência.

"Quando esse paciente não consegue ingerir os alimentos sólidos, são usados suplementos líquidos ou a dieta batida no liquidificador. Nos casos mais graves, é necessário internar e oferecer a dieta enteral. Evita-se a dieta parenteral ao máximo porque a possibilidade de infecção é grande nessas pessoas com sistema imunológico já muito fragilizado", diz Ribas Filho.

"Neste momento, é preciso avaliar esses pacientes e fazer o tratamento adequado não só em relação à alimentação, mas às doenças relacionadas às carências nutricionais", complementa Ribeiro.

Para ele, é fundamental pensar no cuidado coordenado e duradouro dos povos originários. "Não adianta ter um cuidado pontual e depois deixar a população desassistida. Recomendamos um projeto que seja longo e contínuo. Um cuidado físico, com nutrição e medicamentos; psicológico, porque estão sofrendo; e social."