Organização de SP firma parceria com a ONU para acolher estrangeiros LGBTQIA+

Por BRUNO LUCCA

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A venezuelana Ranyelis Acosta, 22, é só sorrisos. Mulher trans, ela vive há quatro anos em São Paulo e hoje mora no centro de acolhida da organização LGBTQIA+ Casarão Brasil, localizado na região de Interlagos, zona sul da capital.

O trabalho da ONG paulistana com imigrantes -são cerca de 30 atendidos atualmente- foi, no fim de dezembro, reconhecido pela OIM (Organização Internacional para as Migrações), da ONU (Organização das Nações Unidas), que assinou com o Casarão Brasil um acordo para fomentar o justo acolhimento a imigrantes e refugiados LGBT+.

Por meio das ações que serão promovidas em conjunto, a comunidade imigrante terá oportunidades de educação e, principalmente, de inserção no mercado de trabalho.

Ranyelis diz que deixou seu país natal em busca de mais dignidade, mas chegar ao Brasil não foi tarefa fácil. Natural de Caracas, ela enfrentou em 2019 uma viagem de mais de uma semana para entrar no estado de Roraima. O trajeto foi percorrido com auxílio de várias caronas.

A jovem estava sozinha e, afirma, de certa maneira sempre esteve. Abandonada pelos pais biológicos na infância, Ranyelis foi agregada a uma família de 28 irmãos. E apesar de estar entre muitos, conta que nunca foi muito próxima deles por se sentir e ser vista de maneira diferente.

Na adolescência, Ranyelis se entendeu como um homem gay. Ao contar para a família, houve divisão. O pai ficou resignado; a mãe, consternada. As irmãs seguiram o pai; os irmãos, a mãe. Não houve tempo para digestão. Poucos meses depois, anunciou ser uma mulher trans. E a família seguiu em desarmonia.

O processo de afirmação de gênero não foi fácil para Ranyelis. "Eu andava na rua e era chamada de marica ou coisa pior. As pessoas me encaravam e até corriam atrás de mim. A Venezuela é um paraíso para homofóbicos."

Ela conta que a violência psicológica levou dois amigos, também trans, a cometerem suicídio.

De acordo com dados do projeto Trans Murder Monitoring (Monitoramento de assassinatos de trans), 131 pessoas transexuais foram mortas na Venezuela entre 2008 e 2002. São 4,5 assassinatos por milhão de habitantes.

No mesmo período, o Brasil registrou 1.741 homicídios -8,2 casos por milhão de habitantes.

Dossiê divulgado pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) na quinta-feira (26) aponta o Brasil, pelo 14º ano consecutivo, como o país com o maior número total de homicídios de travestis e transexuais. De acordo com o documento, 131 indivíduos foram mortos no país em 2022.

A maioria das vítimas tinha entre 18 e 29 anos -a expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil é de 35 anos. Na toada de Brasil e Venezuela, América Latina e Caribe concentram 68% dos assassinados catalogados em todo o mundo desde 2008.

Após sua chegada em terras tupiniquins, Ranyelis passou dez meses em um abrigo em Manaus. Durante esse período, teve regularizada sua situação como refugiada. No começo de 2020, ela então partiu para São Paulo em busca de melhores oportunidades.

Na capital paulista, a venezuelana fez o que pôde para ter alguma renda. Foram dias difíceis, e a falta de apoio pesava, mas só de se sentir mais livre já respirava aliviada, ela conta.

Um dia, rolando o feed de seu Instagram, encontrou outra imigrante trans, a colombiana Camila Queiroz, então abrigada do Casarão Brasil. Ranyelis mandou uma mensagem para Camila e pediu por ajuda. Semanas depois, ambas viviam no abrigo.

"Eu encontrei um lar e devo muito a todos que me acolheram", diz Ranyelis.

Fundada em 2008, a ONG Casarão Brasil conta com um portfólio variado de projetos sociais. A instituição promove eventos culturais, workshops e oficinas de teatro, além de oferecer assistência social e apoio jurídico e psicológico a seus dependentes. Aos estrangeiros são oferecidas também aulas de língua portuguesa.

"A OIM tem trabalhado junto à população migrante LGBTQIA+ e busca realizar atividades de inclusão para essa comunidade. Por isso, a parceria com o Casarão Brasil, que é referência em São Paulo para atividades voltadas a essa população, é tão importante para nós", diz a coordenadora de projetos da OIM, Carla Lorenzi.

"Para nós do Casarão Brasil é uma honra e uma grande responsabilidade essa parceria, pois vamos receber essas pessoas que estão vindo de outras partes do mundo, muitas vezes fugindo de situações de violência e até da própria família. Vamos nos esforçar para atendê-las com muito respeito e amor", diz Rogério de Oliveira, presidente da ONG.

Após sua chegada ao Brasil, Ranyelis estreitou laços com a família, ela diz, com empolgação. Depois de perder dois filhos, a mãe mudou. "Ela diz que é melhor ter uma filha viva, não importa como essa filha seja", conta.

Manter contato com parentes é exceção entre aqueles que vivem no centro de acolhimento, já que muitos estão no Brasil justamente para evitar essa situação. É o caso do marroquino Hamid, 28, morador de São Paulo há 11 meses.

O africano vem de uma família islâmica, como 99% da população do Marrocos, e conta que teve sua homossexualidade reprimida durante toda a vida. Até que, no início de 2022, seu irmão o denunciou a autoridades locais por práticas sexuais com outros homens.

Hamid, então estudante de literatura francesa, deixou tudo para trás. Na internet, ele encontrou o Casarão Brasil e entrou em contato com a organização. Em poucos dias, estava a salvo em solo paulistano.

Hamid diz que hoje é mais feliz, mas ainda tem medo de ser encontrado pelo irmão.

Falando um ótimo português, ele se emociona ao contar suas conquistas recentes: conseguiu um emprego em um parque no Bom Retiro (centro da capital) e alugou um imóvel, deixando assim as dependências do Casarão, algo que o enche de orgulho.

Apesar da autonomia recém-adquirida, ele diz que continua frequentando o local para visitar os funcionários, a quem chama de verdadeira família.