'Situação é caótica', diz vice-governador de SP sobre controle da cracolândia
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Anunciado no primeiro dia de governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) como responsável por coordenar as ações do governo estadual para a região da cracolândia, o vice-governador Felício Ramuth (PSD) conta ter se deparado com uma situação caótica do ponto de vista administrativo. Segundo ele, em quase um mês de trabalho, ainda não conseguiu ter acesso aos dados sobre internação de gestões anteriores.
"Os serviços do estado hoje [em relação à cracolândia] são totalmente desconexos", disse em entrevista à Folha de S.Paulo nesta segunda-feira (30) em seu gabinete no Palácio dos Bandeirantes, zona sul de São Paulo.
Diante disso, segundo o vice-governador, as entidades sociais que trabalham com os usuários de drogas assumiram o papel de encaminhar os dependentes químicos para as internações, o que dificulta o acompanhamento dos serviços públicos.
PERGUNTA - Como avalia o trabalho feito hoje pelo governo estadual na cracolândia?
FELÍCIO RAMUTH - Os serviços do estado hoje [em relação à cracolândia] são totalmente desconexos. Os números de leitos de internação e de ações sociais são muito difíceis de acessar. No poder público, há uma desconexão total de serviços. A situação é crítica, caótica.
Por que está desse jeito?
É um problema que se arrasta há muitos anos e nunca se viu necessidade de integração [com a prefeitura]. Na prefeitura, existem os mesmos problemas. Se juntar tudo, então, o problema é elevado ao quadrado. Não existe hoje, por exemplo, um sistema de acompanhamento da jornada do atendimento. Eu não sei por quais equipamentos cada pessoa passou. Hoje, se você encontrar uma pessoa pedindo para ser internada, a opção é procurar uma ONG. Não existe uma porta de entrada no estado nem no município para encaminhá-la.
P.- O programa anunciou 500 vagas em comunidades terapêuticas, mas no ano passado a prefeitura encaminhou quatro pessoas para esses equipamentos. Como essa opção será efetiva agora?
FR- As vagas são pagas se forem usadas. Até do ponto de vista das equipes envolvidas, [o anúncio] faz diferença no sentido de comunicar que haverá uma atenção às internações.
Por que só quatro pessoas foram encaminhadas para as comunidades terapêuticas no ano passado?
Primeiro, porque a saúde não tem uma porta aberta para encaminhar [os usuários de drogas]. Os canais oficiais não têm uma metodologia clara de como acessar essas vagas. Se for hoje no Caps (Centro de Atenção Psicossocial) levar alguém para ser internado, não vão saber nem onde buscar as vagas.
P.- As internações, hoje, são feitas mais pelas entidades sociais do que pelo estado?
FR- Sim, tenho zero dúvida sobre isso.
P.- Como avalia a operação da Polícia Civil que existia desde junho de 2021 para prender traficantes e deixou de ter novas ações desde o início deste governo?
FR- As ações de inteligência e de atuação contra tráfico são fundamentais e vão continuar, mas vamos fugir sempre daquele marketing. Existem os programas Reencontro, Recomeço, como é o outro? Redenção. A gente brincava que o [nosso] projeto ia ser o quarto R. Então, [o programa] não tem nem nome. É o estilo do Tarcísio, a gente quer fazer primeiro e falar depois.
P.- Qual a crítica em relação ao marketing feito pela gestão anterior?
FR- É justamente em relação à liderança. Se uma liderança valoriza uma forma de ação, é natural que os seus liderados façam da mesma forma.
P.- O sr. indicou o delegado Jair Ortiz para ocupar a vaga de titular da 1ª Delegacia Seccional do Centro?
FR- Não, muita gente pergunta, mas não. Na verdade, quando ele chegou [para ser titular da Delegacia Seccional de São José dos Campos], eu fiquei só um mês como prefeito. Eu o vi só uma vez. Fui conhecer mais o doutor Jair aqui em São Paulo. Não sou tão poderoso assim.
P.- Como foi a construção do projeto para a cracolândia?
FR- Eu fui buscar pessoas para me apoiar. Eu brinco que, se a gente escutar três especialistas, serão cinco opiniões diferentes. É mais ou menos igual às ONGs que cuidam de animais. Então, resolvemos buscar aquilo que era comum a todos. Eu escutei o [vereador Eduardo] Suplicy (PT), uma ONG que distribui cachimbos [aos usuários de drogas], o ouvidor das polícias, Cláudio Aparecido Silva, o padre Júlio Lancellotti. Eu ouvi o doutor Pablo que tem com uma clínica particular [de tratamento de dependentes químicos], a Izilda [Alves] que tem uma história [de superação do vício]. Ouvi o pessoal da ONG Amor Exigente, o pessoal da Narcóticos Anônimos. Então, escutamos muita gente e, a partir de experiências exitosas, construímos uma proposta comum a todos.
P.- Qual é o principal ponto em comum?
FR- Abordagem qualificada, algo que não existe hoje. Óbvio que no meio disso tiveram discussões sobre ter sido bom ou não espalhar [o fluxo de usuários]. Depois de escutar todos, [entendo] que o erro não foi ter espalhado, foi não ter tido uma estrutura para atuar diante dessa nova situação. Então, espalhar, na verdade, para a abordagem é melhor, mas falta gente para dar conta desses novos pontos. O primeiro benefício foi estético, mas foi acompanhado de outros problemas na área de segurança e de não ter o tratamento adequado porque não teve uma coordenação. Agora nós vamos corrigir este erro.
P.- Então o problema foi a falta de gente para ampliar esse trabalho de abordagem?
FR- Aconteceu uma ação sem ter outras [ações] coordenadas. Segundo uma pesquisa da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), 90% dizem que têm o desejo de sair dali. É mais ou menos igual eu que tenho o desejo de começar academia, ou voltar para o inglês. Ou seja, o desejo existe, mas a grande questão é como transformar esse desejo em ação.
P.- Como é trabalhar com entidades ligadas a movimentos de esquerda em um governo que foi eleito com apoio do ex-presidente Jair Bolsonaro?
FR- Nem todas entidades são de esquerda. Tem muita gente fazendo coisa boa, só que cada um remando para um lado diferente. O Tarcísio é o cara do diálogo, ele já mostrou isso em relação à discussão das câmeras nos uniformes dos PMs, e ele não mudou depois de eleito. Então é muito tranquilo a gente atuar dessa forma. Só que nós não vamos fazer escolhas ideológicas nem para um lado, nem para o outro.
P.- Serão feitas internações compulsórias?
FR- A grande questão é que existia um certo medo [da instituição de internação compulsória], propagada pelo próprio prefeito [Ricardo Nunes], que depois entendeu [não ser esse o plano] e deu dois passos para trás em relação a achar que o nosso programa irá se basear nisso. Tarcísio deixou claro que essa opção pode existir, mas em casos extremos.
P.- Como vai funcionar o sistema das câmeras de monitoramento?
FR- Vamos instalar 500 câmeras com inteligência artificial, o que inclui reconhecimento facial até o fim deste semestre monitoradas no Centro de Segurança e Inteligência construído para a Copa, em 2014.
P.- Esse assunto é polêmico?
FR- Não é polêmico. Se você é a favor de usar a câmera no peito do policial, você é a favor de usar câmera no poste para fiscalizar os policiais. Essas câmeras também vão identificar alguém que está sendo procurado pela Justiça. A cidade de São Paulo tem hoje 300 câmeras públicas e todas analógicas. Isso é ridículo, uma vergonha.
P.- Como tem sido a relação com a Defensoria e o Ministério Público?
FR- Eu fui pessoalmente na Defensoria, estive também no Ministério Público e no Tribunal de Justiça para fazer a construção da Justiça terapêutica. Tem muita gente que está naquela região com benefício de pena, ou seja, tem horários que ele tem que cumprir e não tá cumprindo. Se for abordado por um policial militar, será feito o registro da ocorrência e é feita a regressão do benefício voltando para o regime fechado. Estamos criando uma alternativa. Em vez de ir para a cadeia, ele vai poder ir para uma instituição de saúde em regime fechado.