'Pelo menos vou morrer em glória', disse Gloria Maria ao revelar que teve medo de sofrer racismo na TV
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Morta nesta quinta-feira (2) aos 73 anos de idade, a apresentadora Gloria Maria revelou à coluna em 2018 que o racismo a levou a ser uma das últimas repórteres de sua geração a encarar a TV. "Fui a última a entrar no ar, por minha causa. Tive que fazer trabalho com psicólogo e de voz porque eu tinha medo da reação das pessoas", afirmou, na ocasião. "Só tem branco na televisão, aí vai aparecer eu?"
Olhando em retrospecto, no entanto, a jornalista dizia ver o racismo mais fortalecido nos dias atuais. "Antes, era você com a sua voz e seu sentimento racista. Hoje, você tem como ampliar essa voz. Tem internet, rede social, informação que vem do outro lado do mundo."
Gloria Maria afirmou que não se via como uma pessoa corajosa, embora recentemente tivesse se aventurado no maior bungee jump do mundo, na China, com 233 metros de queda livre. "Eu sempre penso no extremo. Tem duas opções: se eu não pular, não vou saber como é; se eu pular, o máximo que vai acontecer vai ser morrer. E, pelo menos, eu vou morrer em glória!", explicou sobre a sua estratégia.
Ao receber a coluna em um restaurante no Copacabana Palace, no Rio, a apresentadora relembrou o processo de adoção de suas filhas, falou do ano sabático na Índia em que cuidou de monges, disse achar uma "birutice" a lenda de que não revelaria a sua idade e falou de suas experiências mundo afora. "A minha vida é ser livre."
Leia, abaixo, a entrevista completa.
Gloria Maria não é corajosa. Ao menos é o que afirma a jornalista, que recentemente se jogava de uma altura de 233 metros no maior bungee jump do mundo, na China, para uma reportagem.
Ela explica a estratégia que usa para saltar no abismo: "Eu sempre penso no extremo. Tem duas opções: se eu não pular, não vou saber como é; se eu pular, o máximo que vai acontecer vai ser morrer. E, pelo menos, eu vou morrer em glória!".
"O câmera fica falando: 'Vai! Vai! Vai!'. E eu: 'Não vou, não vou, não vou!'. Eu penso: 'É suicídio!'. E aí eu vou. Sempre pulo pro suicídio. Minha vida sempre foi assim, eu só sei viver no limite", conclui.
Depois de um período sabático de dois anos em que adotou duas filhas, a jornalista voltou à TV Globo em 2010, integrando a equipe do Globo Repórter. Neste mês, o programa completa 45 anos, e uma reportagem especial feita por ela em Portugal vai ao ar no dia 20.
Gloria diz que a ideia, bastante difundida, de que ela não revelaria sua idade é uma "birutice". "Como eu vou esconder a idade? Eu viajo sem parar e, a cada viagem, tenho que mostrar todos os meus documentos. Todo mundo sabe a minha idade! Mas aí eu não falo porque já virou um folclore. Então vamos manter!", diz.
Ela agarra a carteira, saca dois documentos e os mostra, mas faz o repórter João Carneiro jurar que não revelará o ano de nascimento -avisando que dirá que ele está louco se o combinado for descumprido.
(A idade sugerida pelos papéis é consideravelmente menor que a encontrada em buscas na internet, de 68 anos)
Sempre sorrindo e pontuando suas frases com "meu bem" e "meu amor", Gloria falou à coluna em um restaurante no Copacabana Palace, no Rio. A seguir, os principais trechos da entrevista:
A PAUSA
Me deram esses dois anos [sabáticos, de 2008 a 2010], em que eu queria ir pro mundo sem câmeras, viver as coisas por mim mesma. Só que não deu muito certo, porque, quando me liberaram, três ou quatro dias depois o [amigo] Nelson Chamma me liga e diz: "Queria te convidar para você fazer um trabalho voluntário na Índia".
Fiquei lá dois meses, cuidando de monge, mendigo, servindo de joelhos, e depois de dez dias resolvi trabalhar com crianças também. Foi um sonho, foi maravilhoso.
Voltei pro Brasil, fiquei um tempo e fui pra Nigéria. Eu sempre pensei em ir lá fazer uma coisa com criança. Fui pra ficar dois meses, mas fiquei 25 dias porque não segurei a barra. Era muito violento, muito perigoso. Eu não dormia, botava armário na frente da porta no hotel.
Cheguei aqui e pensei: "Agora tenho que fazer uma coisa no Brasil". Resolvi ir pra Bahia e trabalhar nos abrigos com crianças. Acabei conhecendo minhas filhas, e minha vida mudou 100%.
AS FILHAS
Quando cheguei no terceiro abrigo na Bahia, gostei muito da diretora.
Ela me levou pra conhecer o lugar e tinha uma menininha engatinhando. Ela parou, olhou pra mim e eu falei: "Essa menina é minha filha [Maria, com 10 meses à época]".
Fui conhecer o berçário. Eles disseram: "Tem uma menina que acabou de chegar, tem 20 dias". Quando eu olhei, ela tava de bruços no berço, aquela coisa desse tamanhozinho. Ela virou pra mim [e eu pensei:] "Essa menina [Laura] é minha filha também." Assim, do nada.
Decidi ficar lá trabalhando. Eu cuidava de todas, mas aquelas duas tinham uma outra energia. Meu foco estava nas duas.
Depois de um mês e meio, eu pedi pra verem como elas foram parar lá. Quando estavam procurando as fichas, viram que essas duas eram irmãs de pai e mãe. E ninguém sabia no abrigo. Aí eu falei: "Elas são minhas mesmo".
Só que elas não tinham sido dadas pra adoção. Então você tem que esperar, é um processo de três anos até caracterizar o abandono.
Eu peguei um advogado e entrei [com um processo de destituição do poder familiar]. É uma coisa bem doída, o Estado faz tudo pra criança ficar na família biológica. Nomeiam um promotor contra você, um defensor público pro pai que não existe, pra mãe que não existe. Eles representam essas pessoas que não estão lá e fazem tudo contra você.
Aí apareceu uma pessoa da família que contou a história toda e disse: "Elas têm que ser colocadas em uma família de adoção". Então o juiz me deu a guarda definitiva. Em um ano, eu tinha definitivamente as minhas filhas comigo.
O PRECONCEITO
[O racismo] é muito mais forte hoje. Antes, era você com a sua voz e seu sentimento racista. Hoje, você tem como ampliar essa voz. Tem internet, rede social, informação que vem do outro lado do mundo.
Eu comecei a trabalhar na ditadura militar, em 1976 na Globo, você imagina. Eu fui a primeira negra a aparecer na televisão. Eu não tinha coragem, demorei muito porque tinha medo da reação das pessoas. Só tem branco na televisão, aí vai aparecer eu?
Quando a Globo criou essa coisa do repórter de vídeo, eu fui a última a entrar no ar, por minha causa. Eu tive que fazer trabalho com psicólogo e de voz porque eu tinha medo da reação das pessoas. Mas não é o pânico que dá hoje com essa coisa biruta que você vê. Esse tipo de sentimento virou uma doença. Uma doença que eu acho incurável.
A televisão, com exceção da Globo, que tem a mim, o Heraldo [Pereira], a Dulcinéia [Novaes]... A Globo, embora tenha muito pouco preto, é a que tem mais. No SBT, na Record, Bandeirantes, você vê preto fazendo alguma coisa?
RIO DE JANEIRO
Nunca vi o Rio como está hoje. Moro em frente à praia e não vou, porque tenho medo.
A intervenção [federal] não existe. A cidade nunca esteve tão ruim como está agora. Acho que está acontecendo um vácuo de poder. Acho [que disseram] "Vamos fazer a intervenção" e avisaram lá pros policiais: "Olha, agora é o Exército que tá mandando". Então os policiais recuaram. E o Exército não chegou!
O problema tá numa coisa só: na corrupção, no descaso, no desmando e nos interesses que envolvem todos. Porque como é que chega a droga, as armas? O cara da favela do Vidigal chega no aeroporto pra pegar um carregamento de fuzil?
No caso da Marielle, por exemplo, descobriram que o lote de munição que a matou tinha sido vendido pra Polícia Federal de Brasília. Como esse lote saiu da Polícia Federal? Primeiro falaram que um escrivão teria desviado. Depois disseram que era um roubo dos Correios. Ninguém até hoje apareceu pra explicar mais!
BRASIL
Eu, que comecei a trabalhar e a crescer no Brasil durante a ditadura, consigo ver os dois lados. Era horrível viver numa ditadura, horrível! E tá sendo horrível viver nessa democracia brasileira.
Você não vê ninguém fazendo nada em função do Brasil. Tudo o que a gente tá vendo ser discutido é interesse próprio. Você não viu ninguém ser acusado, julgado, porque pensou uma coisa grande pro Brasil.
O que falta no país é pensar para o povo brasileiro. Por enquanto a gente tá pensando no Brasil dos patrões.
Não sei em quem votar. Tô muito triste, preocupada. É o primeiro ano na minha vida --na última eleição também foi difícil. Mas eu tô pensando, tenho vários caminhos, a gente tá tentando ver uma linha, temos um grupo [com jornalistas, intelectuais e atores cujos nomes ela não revela]. Mas até agora não cheguei a conclusão nenhuma. Eu não vejo luz no fim do túnel.
MUNDO
O mundo é um só. E as pessoas são profundamente iguais. Elas têm os mesmos desejos, emoções, necessidades. Só muda a maneira de exprimir o sentimento.
Por exemplo, se você está na Síria, as pessoas têm os mesmos desejos que aqui. Só que elas têm outras dores por causa da guerra. Mas isso não muda o olhar delas, a percepção que elas têm da vida.
A LIBERDADE
A minha vó me ensinou uma coisa, a mais importante, desde pequenininha: "Você tem que ser livre. Porque a nossa história é uma história de escravidão".
A minha vida é ser livre. Não há nada, nem casamento, nem trabalho... Só filho, talvez, agora, é que tira um pouco minha liberdade. Mas o resto, não.
O mundo hoje tá uma chatice. Se eu pudesse, nesses últimos dez, oito anos, teria dormido, me congelado e acordado na frente.
A gente tá vivendo quase que no período medieval. Nada pode! Você tem que reafirmar se você é negro, se você é gay, tem que bater cabeça. Gente, eu sou de uma época em que todo mundo podia ser tudo, era livre. As pessoas eram o que eram. Agora você tem que estar se justificando o tempo todo.
Imagina se a Elis Regina gravasse "Nega do Cabelo Duro" hoje em dia? Ia ser presa por racismo!
As pessoas tão vivendo um apartheid emocional. Todo mundo quer direcionar a sua vida segundo os valores delas. E aí eu sou uma rebelde.