Técnicas para preparar múmias no Egito eram mais complexas e globalizadas do que se pensava

Por REINALDO JOSÉ LOPES

SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) - Dois novos estudos sobre as práticas de mumificação no antigo Egito indicam que as técnicas de preservação dos cadáveres usadas na região eram ainda mais complexas do que se imaginava. As novas análises mostram que os procedimentos dependiam de uma rede globalizada de aquisição de matérias-primas e de receitas cuidadosamente preparadas, com propriedades antibacterianas e antifúngicas.

O primeiro trabalho, que acaba de sair na revista especializada Nature, é uma colaboração entre cientistas europeus e egípcios que investigaram uma "oficina" de especialistas em mumificação. A instalação foi descoberta em 2016 na localidade de Saqqara, a 30 km da capital egípcia. Os embalsamamentos aconteciam ali no período da 26ª Dinastia (664 a.C. - 525 a.C.), uma fase tardia da história do Egito enquanto reino independente.

O primeiro autor da pesquisa, Maxime Rageot, da Universidade Ludwig Maximilian de Munique (Alemanha), contou em entrevista coletiva online que foi chamado a colaborar com a análise de restos de produtos achados na "oficina" pelo descobridor do complexo, Ramadan Hussein, que acabou morrendo antes de o estudo ser publicado.

"Eu costumava trabalhar com a identificação de resquícios de alimentos em artefatos antigos, mas era uma proposta que eu não podia recusar, porque sempre me interessei pelos aspectos tecnológicos e até econômicos por trás dessas práticas", explicou Rageot.

Dentro da instalação, que tinha salas acima do solo e também subterrâneas, onde alguns corpos foram sepultados, a equipe encontrou jarros e tigelas, vários dos quais com inscrições usando palavras já citadas anteriormente nos poucos textos egípcios sobre o processo de mumificação. Entre essas palavras estão o termo "antiu", às vezes traduzido como "mirra" ou "incenso", dois produtos que também aparecem em textos bíblicos sobre sepultamentos.

A análise química conduzida pelos pesquisadores, no entanto, revelou um cenário mais complexo. Ao que parece, os produtos mais usados eram misturas de alguma gordura de origem animal com resinas e óleos de árvores da bacia do Mediterrâneo, como ciprestes, cedros-do-líbano e juníperos (todas pertencentes ao grupo das coníferas, como os pinheiros). Não havia sinal de mirra ou incenso.

Tudo indica que a receita do "antiu" era ligeiramente diferente da de outro unguento citado nos textos e nos rótulos das vasilhas, o "sefet". Nos recipientes de cerâmica há também a indicação de que certos produtos serviam especificamente para o uso na cabeça do morto, entre os quais as resinas de pistache (outra planta do Mediterrâneo). A equipe constatou ainda o uso de cera de abelha e de betume, uma forma de petróleo obtida na região do mar Morto, entre os atuais Israel, Palestina e Jordânia.

"Vários desses produtos tinham propriedades que reduziam a ação de fungos e bactérias sobre o cadáver. Outros selavam os poros da pele e reduziam a umidade", afirma Rageot.

Ciprestes, pistaches e juníperos não ocorrem naturalmente no Egito e provavelmente eram trazidos de regiões como os atuais Líbano e Síria. Mas o que mais surpreendeu os pesquisadores foi a presença de produtos derivados de plantas como o elemi e o dammar, que só existem em florestas tropicais -talvez as da própria África ou, mais provavelmente, segundo o estudo, as do Sudeste Asiático, trazidas pelo comércio marítimo com a Índia.

"Vemos a prática do embalsamamento dando um impulso a essa globalização antiga. A mistura entre conexões globais e conhecimento químico vai muito além do que se imaginava nas práticas de mumificação", resume outro coautor do estudo, Philipp Stockhammer.

Em outro estudo recém-publicado, a múmia de um adolescente do período ptolomaico (300 a.C. - 30 a.C.), quando o Egito esteve sob o domínio da família à qual pertencia a célebre Cleópatra, foi "desembrulhada virtualmente" pela primeira vez com a ajuda da tomografia computadorizada.

Os pesquisadores responsáveis pela análise, pertencentes à Universidade do Cairo, descobriram que dezenas de amuletos feitos com diferentes materiais acompanharam o menino em sua jornada para o Além.

O chamado "Garoto Dourado", com idade estimada de cerca de 15 anos, foi encontrado em 1916, mas só agora foi possível usar métodos não invasivos para analisar o cadáver embalsamado. O apelido se deve à máscara folheada a ouro que recobria seu rosto.

Além de usar sandálias e ter sido recoberto com uma guirlanda de samambaias, o menino carregava em seu corpo e nas dobras das ataduras pelo menos 49 amuletos. Entre eles havia um Olho de Hórus (representando o deus-falcão de mesmo nome), uma língua moldada com folha de ouro colocada em sua boca e um escaravelho de ouro dentro da cavidade torácica.

Todos os objetos foram escolhidos para dar proteção ao jovem morto e garantir que ele passasse nos testes que, segundo a crença egípcia, eram enfrentados pelas pessoas após a morte. O estudo está na revista especializada Frontiers in Medicine.