Conheça a mulher por trás da estrutura do 'hormônio do amor'
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Os cabelos brancos e os 91 anos podem enganar quem não conhece Yvonne Primerano Mascarenhas, considerada uma das pioneiras da ciência no Brasil pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).
Premiada internacionalmente por suas realizações de impacto na química -incluindo a determinação da estrutura da oxitocina, publicada em artigo na revista Science em 1986-, a mãe da cristalografia no país mantém participação em projetos e é uma ferrenha defensora do ensino e da divulgação de ciência.
Mas não era esse o caminho que Yvonne imaginava. "O acaso exerce mais importância nas nossas vidas do que aquilo que planejamos. Você planeja em uma direção e, de repente, desvia", ensina.
Yvonne saiu com os pais e as irmãs de Pederneiras, no interior paulista, em 1932. Após alguns anos em São Paulo, foi com a família para o Rio de Janeiro e, nas aulas no Colégio Mello e Souza, encantou-se pela área de exatas e abandonou a ideia de cursar letras clássicas. Prestou vestibular para química e, em 1949, ingressou na Universidade do Brasil, atual UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Pouco depois, iniciou também o curso de física.
Para ela, foi uma época muito bonita da física no país. César Lattes tinha participado da descoberta do méson pi [partícula formada a partir de reações no núcleo do átomo] e fundado o CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas). Também estavam sendo criados cursos de física, matemática e química com professores estrangeiros perseguidos por serem judeus ou por inclinações políticas.
Havia muita curiosidade sobre a bomba atômica, levando jovens cientistas ao campo da física nuclear, mas Yvonne preferiu outra área. Ela foi para a física aplicada ao estudo de materiais e viu no inesperado convite para ela e o ex-marido, o pesquisador Sérgio Mascarenhas, trabalharem na nova unidade da USP (Universidade de São Paulo) uma forma de poder se dedicar à pesquisa.
Em 1956, grávida de três meses e com o filho mais velho no colo, viajou de trem para assumir o novo emprego em São Carlos, no interior paulista, cidade em que vive até hoje.
Yvonne é pioneira da cristalografia, método em que os pesquisadores usam difração de raios X para investigar a estrutura tridimensional das moléculas. A técnica é largamente utilizada em diversas áreas e permitiu à cientista trabalhar com vários grupos, atuando para identificar tanto a estrutura cristalina, relacionada às propriedades físicas da matéria, quanto a estrutura molecular, que define as propriedades químicas e bioquímicas.
"Nunca faltaram projetos", conta. Ela menciona a pesquisa que culminou na determinação da estrutura da oxitocina, mais conhecida como "hormônio do amor". A molécula está relacionada à formação de casais, intensifica as contrações no parto, permite a liberação do leite materno e estimula os cuidados parentais.
"Foi um trabalho intenso, mas é um estudo muito interessante porque é uma molécula muito ativa, que funciona no corpo inteiro e na mulher é mais importante ainda", avalia.
Ela também destaca o trabalho com Otto Gottlieb, precursor no estudo de produtos naturais. "Colaborei no estudo de proteínas e meus colaboradores bioquímicos ficaram encantados quando viram os resultados. Toda vez que um problema era resolvido as pessoas ficavam muito contentes, então não saberia dizer qual foi o trabalho mais importante da minha carreira. Acho que distribuí alegria", afirma aos risos.
Pelos resultados de seus estudos, Yvonne recebeu ofertas de trabalho no exterior. Fez o pós-doutorado na Universidade de Harvard e trabalhou em parceria com instituições internacionais, mas nunca quis se mudar. "Eu pensava que eu tinha um bom emprego aqui e que conseguia bolsa para estudar fora para poder fazer um trabalho melhor quando voltasse", conta.
A cada viagem, ela recorda que levava os filhos e reorganizava a rotina. Foi assim nos quase dois anos em Pittsburgh e depois em Princeton, nos Estados Unidos. "Chegava ao lugar e já procurava escola. Escolhia uma perto de casa e ficava no laboratório até a hora de buscar as crianças."
De volta para casa, em São Carlos, havia o apoio de uma funcionária de confiança e da mãe, que, apesar de morar no Rio de Janeiro, ajudava sempre que necessário. "Nunca me passou pela cabeça que eu não pudesse fazer as duas coisas, ser mãe e pesquisadora. Eu dava muita atenção aos meus filhos, mas dividia o meu tempo. Preparava aula quando eles estavam dormindo e estudava muito em casa."
Quanto ao percurso de mulheres na carreira acadêmica, Yvonne ainda vê discrepâncias. "Não fui prejudicada por ser mulher. Mesmo para os cargos administrativos, como a direção do IFSC [Instituto de Física de São Carlos], eu era procurada e perguntavam se eu gostaria de assumir. Mas não é assim para todo mundo. Um mulher que cisma ser chefe de departamento pode ter mais dificuldade do que um homem", afirma.
"Quanto mais responsabilidade uma pessoa tem, mais disponibilidade ela precisa para viajar, trabalhar fora do horário, e a mulher tem uma segunda vida familiar. Sabemos que todo mundo desconfia, pensa que ela não vai conseguir executar suas atribuições por estar presa a responsabilidades maternais e familiares. Muitos não têm confiança em indicar uma mulher para cargos que exijam maior dedicação porque julgam que elas estão muito dependentes dessa outra parte da vida", acrescenta.
Mesmo oficialmente aposentada, a cientista se dedica a projetos de divulgação científica. "É um trabalho que ajuda a despertar a curiosidade das crianças, faz com que tenham um pouquinho mais de visão do que é a ciência. Espero que isso dê resultado no futuro delas", comenta com brilho nos olhos. "Brilham porque gosto."